Cesare Battisti, quatro décadas em fuga
14 de janeiro de 2019Após quase quatro décadas de fuga, o italiano Cesare Battisti, de 64 anos, finalmente desembarcou nesta segunda-feira (14/01) em Roma para começar a cumprir pena de prisão perpétua por envolvimento em quatro homicídios cometidos nos anos 1970. A chegada do fugitivo marca o fim de uma longa série de batalhas diplomáticas travadas pela Itália para capturá-lo e que chegaram a estremecer por anos as relações de Roma tanto com a França quanto com o Brasil.
Especialmente para os brasileiros, o encerramento do "Caso Battisti” deve marcar uma nova fase nas relações com os italianos. No entanto, o desfecho resultou em um constrangimento final: Battisti conseguiu ludibriar as autoridades brasileiras por cerca de um mês. No final, acabou sendo localizado no último sábado (11/01) na vizinha Bolívia, cujas autoridades acabaram se encarregando de finalmente prendê-lo e entregá-lo aos italianos em tempo recorde no fim de semana.
Os crimes
Ainda na juventude, Battisti se envolveu com furtos e logo passou a cometer crimes mais graves. Em 1974, foi condenado por assalto a mão armada. Em uma de suas passagens pela prisão, conheceu militantes do Proletários Armados pelo Comunismo (PAC), um dos numerosos grupos marxistas dedicados à luta armada e atos terroristas que pipocaram na Itália durante os anos 1970.
Os PAC, que nunca chegaram a ter a notoriedade de grupos como as Brigadas Vermelhas – responsáveis pelo assassinato de um primeiro-ministro – se dedicaram inicialmente a assaltos e roubos. Mas entre 1978 e 1979 o grupo reivindicou o assassinato de quatro pessoas.
Uma das vítimas foi o joalheiro Pierluigi Torregiani, que no início de 1979 havia reagido e matado um assaltante em um restaurante.
Pouco menos de um mês depois, membros dos PAC foram à joalheira de Torregiani para matá-lo. Torregiani reagiu mais uma vez e, na troca de tiros, seu filho de 13 anos acabou sendo atingido – ele ficou paraplégico. Torregiani morreu após ser baleado no coração.
Na mesmo dia, outros membros do grupo assassinaram o açougueiro Lino Sabbadin, que também havia abatido um assaltante em seu estabelecimento semanas antes. Após os crimes, os PAC afirmaram que os assassinatos de Torregiani e Sabbadin foram cometidos em solidariedade aos assaltantes mortos que, segundo o grupo, estavam promovendo "uma justa expropriação do capital”. Na mesma época, os PAC também reivindicaram as mortes de Antonio Santoro, um agente penitenciário, e do policial Andrea Campagna.
No final da década, todos os principais membros do grupo, incluindo Battisti, haviam sido presos. Battisti foi inicialmente condenado a 12 de prisão por participação em "um grupo armado”. Em 1981, fugiu da prisão. Nos anos seguintes, se escondeu principalmente no México.
Nesse período, um dos líderes dos PAC, Pietro Mutti, foi preso. Ele acabou firmando um acordo de delação premiada e implicou Battisti nos quatro assassinatos. Segundo o ex-procurador-adjunto Armando Spataro, Battisti assassinou pessoalmente duas das vítimas (o policial e o agente penitenciário) e participou da morte de duas outras (o joalheiro e o açougueiro). Battisti sempre negou participação nos crimes.
Com base na delação de Mutti, a Justiça italiana condenou em 1988 Battisti à prisão perpétua em um julgamento que ocorreu à revelia (sem a presença do acusado). Era o início de uma sequência de choques diplomáticos entre a Itália, apoiadores internacionais de esquerda de Battisti e autoridades francesas – uma prévia do que viria a ocorrer anos mais tarde com o Brasil.
Os anos franceses
Em 1985, o governo do presidente francês François Mitterrand anunciou oficialmente que seu país não iria extraditar dezenas de antigos terroristas de esquerda italianos que haviam fugido para o país. O socialista Mitterrand argumentou que eles haviam começado em paz "uma segunda fase nas suas vidas” em território francês. O presidente também via com desconfiança mecanismos da lei italiana como a delação premiada e a possibilidade de julgamentos in absentia.
Era o começo da chamada "Doutrina Mitterrand”, que por quase 17 anos proporcionaria um período tranquilo para Battisti e dezenas de outros terroristas italianos.
Com base na promessa de Mitterand, Battisti deixou o México em 1990 e seguiu para Paris, onde conseguiu o apoio para sua causa entre intelectuais de esquerda.
Na Itália, no entanto, Battisti não era visto com simpatia nem mesmo pela imprensa de esquerda e pelos partidos políticos do mesmo espectro. Foi um caso raro no país em que tanto governos de esquerda quanto de direita concordaram: Battisti tinha que voltar para cumprir pena. A Associação Italiana de Vítimas do Terrorismo também foi uma crítica feroz da permanência de Battisti na França.
No início dos anos 2000, o governo conservador do presidente francês Jacques Chirac começou a desmontar a doutrina. Em 2002, um ex-membro das Brigadas Vermelhas foi extraditado. Em 2004, a Corte de Cassação da França decidiu, de forma definitiva, que Battisti também seria enviado à Itália. A decisão foi posteriormente confirmada pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Só que o Battisti já havia desaparecido novamente, apesar da vigilância dos serviços policiais franceses que vinham monitorando a possibilidade de uma fuga.
Brasil x Itália
Battisti só reapareceu no Brasil. Em 2007, após ser detido no Rio de Janeiro, acabou sendo levado para o complexo da Papuda, no Distrito Federal. Era o início do capítulo brasileiro. Tal como ocorreu na França, o italiano conquistou a simpatia de intelectuais e políticos de esquerda brasileiros.
Em janeiro de 2009, o então ministro da Justiça do governo Lula, Tarso Genro (PT), concedeu refúgio para Battisti. Genro acolheu os argumentos do italiano, que alegou estar sendo perseguido pelo Judiciário do seu país – apesar de os processos contra ele terem sido validados tanto pelo Judiciário francês quanto pelo Tribunal Europeu. A concessão do refúgio também ocorreu apesar de uma decisão contrária do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare).
A medida provocou reações inflamadas na Itália. Houve protestos em frente à embaixada brasileira. O governo italiano convocou seu embaixador em Brasília para marcar o esfriamento das relações entre os dois países. Os italianos também ingressaram com uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) pedindo o cancelamento do refúgio e a extradição.
Os ministros do STF acabaram concluindo que a concessão do refúgio por Genro havia sido ilegal e autorizaram a extradição. No entanto, eles deixaram uma brecha: cabia ao presidente dar a palavra final sobre se o italiano seria ou não mandado de volta. Ao longo do processo, Battisti teve como advogado Luís Roberto Barroso, que mais tarde se tornaria ministro do STF.
No último dia do seu governo, em 31 de dezembro de 2010, Lula enfim tomou uma decisão: Battisti não seria extraditado. Houve novos protestos por parte da Itália. Em junho de 2011, Battisti deixou a Papuda após decisão do STF.
Nos anos seguintes, ele passou então a levar uma vida tranquila em Cananeia, no litoral sul de São Paulo, com o apoio de simpatizantes de esquerda.
Reviravolta
A situação de Battisti começou a se deteriorar a partir de 2017, quando os governos do PT já haviam ficado para trás.
No mesmo ano, Battisti foi preso em Corumbá (MS). Agentes apontaram que ele estava tentando atravessar a fronteira do Brasil-Bolívia com mais de 10 mil reais em espécie sem declarar o montante. À época, um ministro do governo Michel Temer (MDB) afirmou que "Battisti havia quebrado a confiança do Brasil”. O governo Temer acabou revogando a condição de refugiado de Battisti e sinalizou que era favorável à extradição. No entanto, decidiu esperar uma decisão do STF sobre um pedido de habeas corpus preventivo apresentado por Battisti. Em outubro de 2017, o ministro Luiz Fux concedeu uma liminar e Battisti ganhou mais tempo.
Em dezembro de 2018, semanas após a vitória ultraconservador Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais, o próprio Fux decidiu cassar a liminar que havia concedido em 2017. Fux determinou ainda a prisão de Battisti e destacou que cabia ao presidente decidir sobre a extradição. A dúvida passou a ser se a decisão seria tomada por Temer ou por Bolsonaro.
Temer assinou a extradição no dia 14 de dezembro. Só que, tal como havia ocorrido na França 14 anos antes, Battisti já havia voltado para o submundo. Agentes da Polícia Federal realizaram buscas em Cananeia e até mesmo na casa de um ex-deputado do PT. Foram mais de 30 diligências em busca do italiano. Todas sem sucesso.
No final, Battisti foi localizado em Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia. O governo do esquerdista Evo Morales não quis se envolver com o italiano. Os bolivianos negaram um pedido de asilo e determinaram que ele fosse expulso e entregue às autoridades do país europeu. A decisão pegou de surpresa vários apoiadores brasileiros de Battisti que torciam para que Morales acolhesse Battisti.
O envio de Battisti também acabou ocorrendo sem qualquer participação do governo Bolsonaro. No domingo, o ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno, chegou a afirmar que um avião da Polícia Federal havia sido enviado à Bolívia para buscar Battisti e trazê-lo ao Brasil, onde seria posteriormente entregue aos italianos. Mas Roma não quis arriscar: enviou um jato capaz de viajar da Bolívia à Itália sem passar pelo Brasil.
Após Battisti embarcar, o ministro da Justiça italiano, Alfonso Bonafede, disse ao jornal Corriere della Sera que a Itália preferiu evitar uma escala no Brasil para driblar o cumprimento de uma determinação do STF, que só autoriza a extradição de foragidos se o país onde ele cumprirá pena aceitar limitar o tempo de prisão a no máximo 30 anos, conforme prevê a legislação brasileira. "Não passando pelo Brasil, Battisti irá cumprir a sentença de prisão perpétua”, disse Bonafede. Ainda assim, o direitista vice-premiê Salvini telefonou nesta segunda-feira para Bolsonaro para agradecer o "empenho do Brasil em solucionar o caso Battisti”.
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