"A extrema direita no Brasil não é só o bolsonarismo"
11 de novembro de 2022A presença de grupos de extrema direita em frente a quartéis espalhados pelo Brasil e em estradas país afora é parte de uma dinâmica social que está cada vez mais independente da figura de Jair Bolsonaro (PL), derrotado por Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nas eleições presidenciais deste ano.
A avaliação é de Letícia Cesarino, antropóloga, professora e pesquisadora na Universidade Federal de Santa Catarina e autora de O Mundo do Avesso: Verdade e Política na Era Digital (Ubu Editora), publicado no fim de outubro. O livro analisa o ecossistema das redes que desde as eleições de 2018 e o surgimento de uma nova forma de organização política a partir da internet.
Em entrevista à DW Brasil, Cesarino ressaltou que o discurso que impulsionou Jair Bolsonaro ao poder se complexificou e se solidificou ao longo dos últimos quatro anos, "tornando-se cada vez mais autônomo" em relação à figura do atual presidente. "Há uma camada de influenciadores inseridos nesse ecossistema impulsionados pelos algoritmos. A extrema direita não é só o bolsonarismo."
Ela também ressalta que integrantes de grupos radicais de extrema direita, imersos em uma espiral de mentiras e informações falsas sobre a política do país, precisam ser submetidos a uma 'dieta de mídia'. "Quem está no nível seita, o mais radicalizado, só com desprogramação. É muito difícil você reverter esse quadro. Um pressuposto é que você precisa tirar a pessoa desse ambiente das redes e o acesso a esse conteúdo", ponderou.
DW Brasil: A rede de informações do bolsonarismo mudou ao longo dos últimos quatro anos ou ele se alimenta dos mesmos expedientes?
Letícia Cesarino: Ela é mais complexa e multiplataforma. Talvez o termo correto nem seja rede, mas ecossistema, a partir do volume e das várias camadas na internet. Existe a superfície, que são as redes sociais, os canais de YouTube abertos, até as camadas mais subterrâneas, dentro de aplicativos de mensagens como Whatsapp, Telegram e Kwai, e outros mais alternativos, como o Gettr. Então, se em 2018 nós tivemos algo como uma explosão de informação e de discurso político antissistema e extremista, hoje o que nós temos é uma rotinização e uma perenização desse tipo de discurso. Ele é auto-sustentável, tem seus influenciadores, canais próprios e formas de monetização. As pessoas que atuam nesse tipo de mídia não precisam mais acessar o público convencional.
Permanente no sentido de ter mais durabilidade e fortalecido?
São grupos de Whatsapp que abrem e fecham, influenciadores que crescem e depois diminuem o seu alcance. O Allan do Santos, por exemplo. Foi muito importante em um momento, mas foi investigado, o [site do blogueiro] Terça Livre acabou e outros atores assumiram esse espaço. Há uma dinâmica sistêmica e estável. Os seguidores do Jair Bolsonaro e os eleitores de extrema direita têm para onde ir. Uma dieta de mídia que é só deles e está separada do público convencional.
Como você define o termo populismo digital e como ele se insere na realidade brasileira a partir do que temos visto nesse período pós eleição?
Essa categoria do populismo é mais próxima do que aconteceu em 2018, quando se tinha esse modelo mais clássico de liderança populista que irrompe na esfera pública e galvaniza aquele sentimento de insatisfação e esperança. Nós ainda temos elementos de populismo no discurso de "nós contra eles", de uma suposta elite cultural, econômica, midiática e antissistema. Mas isso se tornou mais difuso e com uma fusão dessa dinâmica alternativa da realidade misturada às teorias da conspiração. Houve uma mudança desse populismo.
É uma parcela da população que está separada do público convencional e que recebe uma uma dieta de narrativas distintas da nossa, mas que ao mesmo tempo depende também dessa relação de oposição. É uma dependência contraditória, onde se produz uma realidade invertida. Nesses segmentos mais extremos, eles olham para o nosso público e identificam uma visão golpista contra o Bolsonaro e a implementação de um Estado autoritário. E nós olhamos essas manifestações com a lente do golpismo democrático.
Esse 'espelho invertido' está baseado no subterrâneo da internet, especialmente nos grupos Telegram. Na medida em que esse ecossistema vai se aproximando do público de superfície, o discurso mais extremista se atenua. Você não vai encontrar um posicionamento tão explícito sobre intervenção militar na Jovem Pan. O que há é uma dúvida sobre o processo eleitoral, que acaba funcionando como algo complementar e que ajuda a conturbar a situação.
A figura do Jair Bolsonaro deixou de ser fundamental para o bolsonarismo nas redes?
Acredito que menos do que antes, porque em 2018 ele teve esse papel central de agregar em um nível virtual mais amplo uma diversidade de insatisfações que estavam fragmentadas, como o lavajatismo e o movimento pró-impeachment. As pessoas não se reconheciam com conservadoras ou pertencentes a uma extrema direita nacionalista. Mas, à medida que esse discurso bolsonarista foi se rotinizadno, a identidade foi se consolidando e o ecossistema se complexificou, acredito que ele esteja se tornando cada vez mais autônomo em relação ao Bolsonaro. Há uma camada de influenciadores inseridos nesse ecossistema impulsionados pelos algoritmos. A extrema direita no Brasil não é só o bolsonarismo.
Agora, o Bolsonaro deixar o poder significa que eles perdem essa figura que faz a mediação entre o público convencional e a extrema direita mais radical. Ele conseguia pautar a imprensa, a grande mídia, e o seu público fiel ao mesmo tempo. A chegada de uma outra força ao governo muda essa dinâmica, ainda que seja difícil prever o resultado disso neste momento.
Como se explica o nível de imersão visto por alguns bolsonaristas em uma realidade totalmente paralela à que temos visto atualmente?
Acredito que o que está havendo agora, e que não acontecia antes, é que essas multidões que iam às ruas apoiar as manifestações pró-governo, como no 7 de setembro, mostravam a diversidade do público bolsonarista. A passagem da multidão online para o offline refletia o espectro mais amplo desse grupo político, com aqueles que pediam a intervenção militar e também quem defendia pautas mais moderadas. Ele teve 58 milhões de votos e nem todos são fanáticos.
O que nós temos agora são só os radicais. São sectários e conspiratórios, presos à ideia de um complô. Eles não conseguem aceitar outra definição de povo que não seja a deles. E esse ambiente foi sendo criado ao longo dos últimos anos em mídias diversas, baseados sempre nas mensagens de viés de confirmação. A ideia é sempre reforçada. São vários níveis de ficção transformados em realidade orquestradas por influenciadores que segmentam as redes e as mensagens.
Como esses influenciadores atuam e qual o tipo de segmentação?
As pessoas nas manifestações ou na esfera bolsonarista não são iguais. Há uma grande massa de usuários que recebem, recirculam e mimetizam o conteúdo. E existem os influenciadores, uma parcela menor de usuários, que propõem narrativas, fazem vídeos e distribuem nas redes. Alguns são influenciadores de plataformas abertas, em canais no Youtube e grupos do Telegram. Mas há, sobretudo no Telegram, aqueles que estão camuflados. Eles se colocam como pessoas comuns e fazem um trabalho de distribuição de conteúdo e direcionamento da narrativa. Por exemplo: depois do primeiro pronunciamento do Jair Bolsonaro após a derrota para o Lula ficou uma sensação de dubiedade sobre o que deveria ser feito. É para ir para a rua? Para o quartel? E existem essas figuras que em pouco tempo conseguem direcionar o fluxo e a ação dos usuários. Não é aleatório. São como tradutores dessa realidade paralela.
Há como resgatar pessoas que estão no nível mais submerso de distorção da realidade?
Quem está no nível seita, o mais radicalizado, só com desprogramação. É muito difícil você reverter esse quadro. Um pressuposto é que você precisa tirar a pessoa desse ambiente das redes e o acesso a esse conteúdo, algo como diversificar a dieta de mídia, porque em alguns casos eles recebem notícias da TV Globo, da Folha de S.Paulo, mas sempre com uma leitura oposta à realidade. Entre os radicais, não dá para ser pontual. Não adianta mostrar uma checagem, porque o olhar é de manipulação. Os radicais são sectários e precisam ser empurrados para a franja, com uma diminuição quantitativa dos atores nas redes.
Quem está em níveis menores de imersão, sem uma aversão total ao público convencional, existe uma chance maior de chamá-los à realidade. O problema é nessa superfície onde uma parcela da direita encontra o bolsonarismo. A tendência não é que a pessoa saia do radicalismo, mas que ela seja sugada. E o expediente mais utilizado é o da dúvida. "Será que as urnas foram auditadas?" "Não é estranho que o Lula tenha tido 100% dos votos em algumas urnas?". Defendo que a atuação de controle deva ocorrer nesta camada de superfície, como Jovem Pan e Brasil Paralelo, que funcionam como recrutadores. É o tal do 'rabbit hole (buraco do coelho)': a pessoa começa em um canal desses e a depender do nível de vulnerabilidade intelectual acaba se associando a uma célula neonazista.
Quais são os padrões de dinâmica nas redes inerentes ao Bolsonarismo que se repetem em outros países?
Há um contexto político. A infraestrutura das redes têm um papel preponderante, porque existem muitas similaridades em países completamente distintos, como Índia e Brasil, que compartilham esse fenômeno que alguns chamam de "tecnopopulista" na internet. É claro que o caso norte-americano acaba sendo mais próximo, porque há uma troca de informações entre a "Alt Right" e a extrema direita brasileira. E acredito que haverá uma perenização desse grupo similar ao que houve nos EUA, que não deixou de existir só porque o Trump perdeu a eleição.
Em todos os países há uma relação muito próxima entre um aplicativo de mensagens, geralmente o Telegram, e o YouTube, que é um repositório de informações. E o Google não faz esforço que deveria para coibir a disseminação de mentiras, também porque é fácil camuflar mentiras em um vídeo de 2h. É diferente do Twitter, onde o espaço é muito curto. Mas mesmo assim o Google precisa fazer mais.
A atuação das plataformas é problemática?
Ainda está muito aquém. Houve um pequeno avanço, que é o reconhecimento do problema. As principais plataformas têm buscado algum diálogo, mas isso só aconteceu porque essa questão ocupou os holofotes no debate público. Às vezes, fico com a sensação de que as empresas fazem o mínimo só para ter o que mostrar. E assim não fazem o que de fato precisa ser feito. Em março, o Alexandre [de Moraes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral] ameaçou com um bloqueio ao Telegram e a plataforma respondeu e depois eliminou alguns grupos. Mas a atuação ainda tem sido com base na ameaça.
Como avalia a atuação do ministro Alexandre de Moraes?
Polêmica. Ele mantém uma ancoragem na institucionalidade e não acho que seja só punitivista. Mas ele tem um braço mais incisivo que os demais juízes. E acredito que os colegas do Supremo e do TSE dão um backup nesse sentido. Importante ressaltar que nós estamos em um estado de exceção, iniciado na pandemia e que se perpetua no período eleitoral. Esse estado não é só pela forma como a direita age, mas pelo ambiente criado nas novas mídias. Existem os termos de uso, mas eles dizem pouco sobre o controle das redes.
Então, esse controle precisa vir de fora, não tem outro jeito. E nós não temos uma legislação ou uma regulação robusta. O Alexandre de Moraes tomou para si essa tentativa de controle indireto. E, às vezes, quando se é ignorado como aconteceu com o Telegram, foi necessário uma ameaça de bloqueio. E aí a plataforma responde. Ele tem combinado as duas coisas: a institucionalidade com as leis que existem e uma forma mais direta para coibir excessos. É um mal necessário, porque ele está sabendo jogar esse jogo muito mais que os outros ministros. Mas, no médio prazo, não é o ideal.