Ópera
24 de abril de 2007Para encenar O Navio Fantasma, de Richard Wagner, com "tempero brasileiro", o diretor Christoph Schlingensief voltou ao território em que o também alemão Werner Herzog rodou Fitzcarraldo, em 1982: o Teatro Amazonas, em Manaus. A "brasilidade" buscada pelo diretor, no caso, significa, entre outros, passistas de escola de samba de biquíni no palco.
Com procissão ao ar livre no primeiro dia (22/04) e participação de sambistas, artistas do boi bumbá e carros alegóricos, o diretor optou por "carnavalizar" Wagner na capital amazonense, causando arrepios nos admiradores puristas do compositor, que se deslocaram até Manaus especialmente para o evento. E despertando a atenção dos milhares de espectadores, presentes no Largo de São Sebastião.
Em entrevista à DW-WORLD, Schlingensief descreve como a recepção da obra de Wagner é "normal" em Manaus, longe das "salas de visita alemãs", onde se tenta manter o compositor "asséptico".
Depois de denunciar o turismo sexual na região e prometer voltar a Manaus no próximo ano, o diretor, responsável por incontáveis polêmicas na Alemanha, afirma: "O mundo dos fantasmas de Wagner e o mundo dos fantasmas do Amazonas combinam perfeitamente".
DW-WORLD: Uma soprano estrangeira, que participou de uma ópera recentemente em Manaus, afirma que foi "uma experiência extrema" cantar na cidade. Para você foi também uma "experiência extrema" trabalhar na cidade?
Christoph Schlingensief: Foi uma experiência extrema e, por isso, tão produtiva. Ficar sempre sentado sob a mesmice da rotina alemã deixa cego. Ficamos quase três meses aqui e não gostaria de ter ficado nem um dia a menos.
Apesar do Festival Amazonas de Ópera [que acontece em sua 11ª versão], o público de Manaus tem menos contato com encenações de ópera que o europeu. Isso foi para você uma vantagem?
Não.
Você colocou os brasileiros não profissionais de teatro e ópera que participaram da encenação em contato com a obra de Wagner? Foi imporante para você que eles conhecessem a obra do compositor ou não houve tempo para isso?
Quando se ensaia durante dois meses, os participantes, técnicos e moradores da favela ouvem Wagner, então isso não é nada especial. Wagner se torna, aqui, uma música normal. Ele não é tão importante quanto nas salas de visita alemãs. Só nos chamados círculos wagnerianos é que se tenta mantê-lo asséptico. Aqui isso não interessa a ninguém.
Samba, rituais afro-brasileiros, pobreza e mulheres de biquíni. Por que tantos clichês sobre o Brasil?
Pobreza como clichê? O que significa essa pergunta? Você já viu quantas pessoas dormem aqui na rua? Isso é um clichê?
Você já pensou em levar as pessoas que atuaram na encenação de Manaus para a Alemanha, a fim de apresentar ao público alemão essa versão de Wagner com samba?
Vamos levar o espetáculo para São Paulo e provavelmente também para a Alemanha e Viena. Como a encenação foi um grande sucesso, o secretário de Cultura do Amazonas nos convidou para voltar no próximo ano.
Entre os filmes que você cita na encenação está "Saló", do cineasta italiano Pier Paolo Pasolini, e não "Fitzcarraldo", de Werner Herzog [longa do diretor alemão, de 1982, que tem o Teatro Amazonas como cenário]. O Brasil serviu de inspiração para lembrar os "120 Dias de Sodoma", de Pasolini?
Sobre o Brasil em geral não posso dizer nada, mas o período colonial, digamos, a era da borracha em Manaus, foi um momento que equivaleu a uma zona. Havia industriais podres de ricos, uma ópera de outro planeta e bordéis, prostituição infantil, perversão. Até hoje esta região sofre sob o turismo sexual. A companhia aérea Varig acabou de iniciar uma campanha que tem a prostituição infantil como tema.
Kinski [ator alemão Klaus Kinski, morto em 1991, protagonista de Fitzcarraldo] fez Wagner ressoar na floresta. Com um gramofone. Nós passamos por ali com uma grande orquestra. E os barcos de Fitzcarraldo estão ancorados em massa aqui nos portos. A mim interessa mais pensar numa ópera que nasce da força do que numa ópera privada.
As notícias veiculadas pela imprensa alemã sobre a encenação de "O Navio Fantasma" giram, em grande parte, em torno de Manaus como cenário. Wagner foi colocado de lado. Você teve como propósito levar ao palco mais do Brasil e menos de Wagner?
O mundo dos fantasmas de Wagner e o mundo dos fantasmas do Amazonas combinam perfeitamente. Isso é o que eu quis mostrar e obtive êxito.
O escritor brasileiro Milton Hatoum, que vem de Manaus, diz [em "Relato de Um Certo Oriente"] que "a cidade e a floresta são dois cenários, duas mentiras separadas pelo rio". Você passou mais de dois meses na cidade. Poderia comentar esta descrição?
A diferença não é o rio. Isso é besteira. Há também uma floresta urbana. E Manaus tem 1,8 milhão de habitantes. Acho a floresta melancólica e genuinamente verdadeira. A cidade tenta, sempre, fazer vista grossa a isso. O outro lado espera pelo ataque. Por isso estivemos com tanta freqüência do outro lado. Na floresta amazônica.
"O Navio Fantasma", de Richard Wagner / Direção: Christoph Schlingensief / Regente: Luiz Fernando Malheiro / Depois de uma procissão ao ar livre na última sexta-feira (20/04) e de uma apresentação no Teatro Amazonas na última segunda-feira (22/04), "O Navio Fantasma" será encenado nesta quarta-feira (25/04), como parte do 11° Festival Amazonas de Ópera.