Veredicto de poeta, boca do inferno
3 de julho de 2005O austríaco Peter Handke prossegue sua série de escritos polêmicos em torno da guerra dos Bálcãs com uma recente contribuição à revista alemã Literaturen. Desta vez, ele retorna ao julgamento do antigo presidente iugoslavo Slobodan Milosevic, acusado de crimes de guerra pelo Tribunal de Haia. Handke, convocado pela defesa – entre mais 1600 nomes – para depor no processo Milosevic, justifica neste recente escrito por que se recusou a comparecer ao banco de testemunhas.
"Tenho a profunda convicção de que o Tribunal Mundial, que não pára de avaliar (e avaliar), no Auditório Número Um, a antiga Câmara de Economia de Haia, não vale nada – e que esse Tribunal, independente do que seja formalmente de sua alçada, não passa de um erro, do começo ao fim, e continua cometendo erros e continuará cometendo erros – e que ele não vai contribuir em nada para descobrir a verdade – que, apesar da fachada de dignidade ressaltada por todos, ele é um abominável escárnio da idéia de Direito, uma idéia eterna em comparação com outras; ou seja, um TRIBUNAL ERRADO..."
"Isso mesmo, e a minha 'profunda convicção' não pára por aí. Não só acho que Slobodan Milosevic está diante do tribunal errado. Embora não o considere 'inocente', considero-o 'inocente no sentido da acusação' e no sentido da organização do processo, de sua conduta e da forma como é conduzido pelos juízes."
Diante do tribunal da mídia
Em um ensaio de 20 páginas, o romancista e dramaturgo austríaco, que estudou Direito em Graz, retoma a questão da legitimidade de um julgamento, cuja sentença já foi pronunciada pela mídia mesmo antes da extradição do réu.
Desde seu relato Eine winterliche Reise zu den Flüssen Donau, Save, Morawa und Drina oder Gerechtigkeit für Serbien" (Uma Viagem de Inverno pelos Rios Danúbio, Sava, Morava e Drina ou Justiça à Sérvia, 1996) até seu depoimento de observador no Tribunal de Haia, Rund um das Grosse Tribunal (Em torno do Grande Tribunal, 2003), Handke publicou outros textos ficcionais e ensaísticos nos quais volta a contrapor a posição de testemunha ocular do poeta viajante à parcialidade anti-sérvia da cobertura jornalística da Guerra dos Bálcãs.
Esta nova contribuição de Handke ao fogo eterno da polêmica dos Bálcãs rendeu algumas críticas ferozes – como a acusação de que o escritor já faz parte do "complexo poético-militar" (taz) – e algumas defesas contidas, por parte da imprensa alemã. Mas nada de muito escandaloso. De duas uma: ou a controvérsia já se desgastou, ou as implicações antiamericanistas da crítica handkeana ganharam mais aceitação nos últimos anos.
Poesia para as massas
Todo ano, o Festival de Poesia de Berlim abre espaço para manifestações poéticas contemporâneas que possam ser traduzidas para outras mídias – voz, dança, ópera, performance, música, teatro – e, conseqüentemente, para o grande público. A idéia é atingir um público mais amplo, para além do reduzido círculo de leitores "profissionais" da arte lírica.
A edição deste ano, ocorrida entre 18 e 26 de junho, incluiu em sua programação artistas como Laurie Anderson, com a performance "poético-prosaica" End of the Moon, onde tece associações lunáticas em poemas de amor e relatórios de um experimento artístico com a Nasa, até Eugen Gomringer, o co-iniciador da Poesia Concreta na década de 50, paralelamente ao Grupo Noigandres, de São Paulo.
Em sua conversa com o público, o poeta suíço-boliviano Eugen Gomringer explicou como transferiu as inovações formais da arte concreta para a poesia e batizou o movimento junto com o poeta paulista Décio Pignatari, num encontro em Ulm, no sul da Alemanha. Gomringer, representante de uma vertente do Concretismo literário que joga com "constelações" de palavras avulsas a serem combinadas por permutação, justifica hoje, a posteriori, seu interesse pela materialidade da linguagem. O que sempre o interessou foi a "aura da palavra", algo que transparece com mais nitidez quando cada termo é tomado como objeto isolado.
Uma tradição interessante do Festival de Poesia de Berlim é um evento de tradução de poesia praticamente instantânea. Neste ano, a língua de destaque foi o espanhol. Dezenas de poetas alemães, suíços, austríacos, espanhóis e hispano-americanos se reuniram em pares durante três dias, para traduzir – com ajuda de uma tradução interlinear e do intermédio de um intérprete – poemas de uma língua para outra. O resultado, apresentado em duas noites consecutivas, dá uma mostra bastante diversificada da atual produção poética nas línguas em questão.
O depoimento dos poetas envolvidos no evento e o repertório apresentado ao público revelaram que a grande diferença entre as manifestações poéticas de língua espanhola e de língua alemã é a discrepância do teor metafórico. Na amostra espanhola, as imagens da poesia se alimentam de um significado metafórico, daquilo que ainda está por trás da imagem, enquanto os alemães são mais fixados na função de visualização que a imagem pode desempenhar dentro do poema.
Leia a seguir a resenha do livro Besuch bei Zerberus (Visita a Cérbero), de Anne Weber. >>>
Anne Weber: Besuch bei Zerberus (Visita a Cérbero). Frankfurt: Suhrkamp, 2004 (111 p.).
"A noite rompe como fruto maduro, doce, mas de seu interior brilham os dentes caninos do animal. Quem enfiar a cabeça aqui, confiante, acaba de colocar o pé na outra terra, acaba de deixar atrás de si a realidade com seus edifícios novos, velhos conhecidos, e seus novos centros antigos, para se arriscar pela região legendária e parcamente explorada da imaginação. Ao chegar lá, a primeira surpresa já está à espera: para os moradores deste lugar, a realidade é o inferno e Cérbero seu guardião. Todos os esforços visam somente a chegar lá o mais tarde possível; mas mais cedo ou mais tarde, todos têm que passar para o outro lado, pelo que dizem. Eles vêem esta passagem como final trágico e o denominam 'olhar a realidade nos olhos'. Para adiar o máximo possível ou excluir de vez este temido instante, eles passam a vida toda com as costas viradas para a fronteira e para o vigia da fronteira. Cérbero olha para a terra da fantasia como se fosse uma pintura de Caspar David Friedrich. Ele a denomina Terra dos Alienados. O que os alienados vêem está em seu campo de visão interior, o que cheiram penetra seu olfato interno. Os alienados não conhecem o exterior, porque o transformam em interior, sem vê-lo nem ouvi-lo, até ele florescer e assumir formas fantásticas, como seria de se esperar de tramas fantasiosas."
Viagem às portas do Hades
O último livro de Anne Weber (Offenbach, 1964), Besuch bei Zerberus (Visita a Cérbero) escapa a qualquer classificação de gênero literário. Não tem um enredo contínuo e consistente, como um romance; não leva reflexões associativas até as últimas conseqüências, como um ensaio. Esta prosa literária simplesmente descreve a trajetória da consciência por regiões limítrofes.
Cerbère: cidade na fronteira da França e da Espanha, nas imediações de Port Bou, onde o filósofo Walter Benjamin cometeu suicídio durante a fuga dos nazistas. Cérbero: cão de três cabeças que guarda a entrada ao Hades, a esfera dos mortos na mitologia grega. A voz feminina deste livro com traços autobiográficos, "narrado" pela própria autora e desprovido de personagens, diz ter partido em busca de um confronto direto com a realidade. E se envereda pelos limiares da linguagem até Cerbère, onde buscava a memória do pai literário, Benjamin, mas acaba se confrontando com a notícia da morte iminente do pai real.
A invenção da pólvora
Esta linha potencialmente narrativa não é contada de fato, apenas insinuada em momentos esporádicos. O leitor nem sequer tem pistas consistentes de onde se situa exatamente esta voz, de quanto tempo dura esta viagem. Entre algumas poucas indicações de espaço e tempo desdobra-se uma cadeia de pensamentos que parecem encobrir a percepção do mundo exterior.
A ousadia de uma narrativa sem enredo dificilmente se deixa conciliar com as vertentes da prosa contemporânea alemã. O caráter experimental de Besuch bei Zerberus provavelmente se deve mais à filiação de Anne Weber à literatura francesa. Residente desde 1983 em Paris, onde estudou Literatura Francesa (Sorbonne) e trabalhou em editoras, Weber teve seus primeiros contos publicados na França, até ser descoberta pela editora Suhrkamp, onde lançou Ida erfindet das Schiesspulver (Ida inventa a Pólvora, 1999), Im Anfang war (No princípio era, 2000) e Erste Person (Primeira Pessoa, 2002).
Uma alemã da França
O motor deste livro é o movimento associativo da consciência, algo que marca o discurso dos pensadores e prosadores franceses, menos sistemático que o dos os alemães. O ritmo desta prosa é determinado pela duração inconstante de pensamentos que se intercalam e se interrompem de repente, quando o fôlego associativo acaba.
O teor e o tom filosófico deste livro de Anne Weber dividiu a crítica. Por um lado, a mistura "do filosófico com o biográfico, de leveza com seriedade, de uma voz pessoal com questões universais" levou o Die Zeit a denominar Anne Weber "um Thomas Bernhard feminino, mas jovem e um pouco mais simpático". O Frankfurter Allgemeine Zeitung, por sua vez, reclamou que "o peso da teoria e a artificialidade diminuem o prazer da leitura": Neste livro, "a filosofia da linguagem se camufla de literatura".