Sigmar Polke: a arte liberta
24 de outubro de 2005Sigmar Polke é tratado como um clássico morto. Ele é considerado o artista alemão "mais bem cotado e mais arredio à publicidade" (Die Zeit). Sua posição de inatingível é legendária. E quando ele resolve aparecer, isso só acontece quando está instalado cautelosamente em seu ateliê ou em casa.
Sua biografia dificilmente garante acesso à sua obra, embora ele até pareça interessado em escrevê-la, como o fez no texto Frühe Einflüsse, späte Folgen (Influências Iniciais, Conseqüências Tardias), para um catálogo da Kunsthalle de Tübingen. Mas isso não ajuda muito.
Enxergar um Polke como ele é só é possível através de uma visão individual. "Ver as coisas como elas são": uma frase escrita de trás para frente sobre um de seus quadros, como se as letras estivessem espelhadas.
Orientação por malhas e pontos
A estréia artística de Polke ocorreu em 1963, na loja de móveis Berges, em Düsseldorf. Junto com Gerhard Richter, Konrad Fischer-Lueg e Manfred Kuttner, ele protestou em favor do Realismo Capitalista, lançando o lema "Vida com Pop". Na época, tinha vinte e poucos anos, vivia há uma década na Alemanha Ocidental e estava matriculado na Academia de Artes de Düsseldorf.
A "exposição-protesto" era mais do que uma polêmica sobre a pop art deste lado do Atlântico e para além da Cortina de Ferro. Seu ponto de partida era uma linguagem pictórica referente ao cotidiano, como à da pop art made in USA.
Mas nessa ação de Düsseldorf, o alvo da crítica era tanto o realismo socialista da Alemanha Oriental como a pintura dogmática do pós-guerra no oeste da Alemanha. A crítica dos três artistas se dirigia contra os mecanismos da ideologia do consumo da pequena burguesia alemã.
Em conseqüência disso, surgem quadros com malhas e estruturas decorativas, nos quais Polke transfere para a pintura padrões visuais extraídos da imprensa, livros de banca de jornal, anúncios e cartazes de cinema.
Os padrões de bolachas de chocolate, pôsteres de mulheres nuas, barras de chocolate e meias masculinas são aplicados à tela, gerando idílios burgueses sobre uma tapeçaria de florezinhas que Polke elegeu como motivo pictórico, tornando-se internacionalmente famoso por isso.
Apesar de a predileção por pontos também se dever à sua miopia de nascença, conforme diz o artista, avesso à sede de interpretação da crítica, Polke não utiliza o sistema de pontos como meio estilístico superficial, como o fez Roy Lichtenstein, mas o explora em sua profundidade filosófica.
Difícil de enquadrar
Sigmar Polke não se deixa enquadrar em padrão nenhum. Gosta de se comportar sem o menor estilo, recusa-se a se fixar em algo específico. A imprevisibilidade o atrai. Foi assim que passou da pintura de malhas para a arte conceitual.
Começou a jogar com referências pós-modernas, citações e simbologia mitológica, serviu-se da pop art, do construtivismo, da pintura de campos de cor, da linguagem formal e de cores do minimalismo, do fluxus e da arte povera.
Até a próxima virada: após uma fase boêmia numa comunidade rural nas imediações de Düsseldorf e depois de suas viagens ao Paquistão, Afeganistão, Sudeste Asiático, Austrália e Papua-Nova Guiné, Polke começou a procurar no início dos anos 80 algo que substituísse a linguagem pictórica tradicional.
Ele se dedicou a experimentos com cores e diferentes materiais sobre telas de grande formato, tanto no ateliê como na câmara obscura. Polke começou a "fotografar" de acordo com critérios da pintura e aplicar sobre a tela ligas de prata sensíveis à luz. E continuou pintando, desenhando, escrevendo, fazendo colagens e montagens, inclusive sobre vidro ou folha de plástico.
Ele queria que seus quadros se tornassem vivos, transformando-se em organismos que reagem ou continuam se desenvolvendo. Polke experimentou o que acontece quando se mistura verniz, diluente, nitrato de prata, bário, metanol ou álcool nos quadros. O artista confessa ter usado em suas telas pigmentos até perigosos, como o verde Schweinfurt, que contém arsênio.
E prosseguiu com seus experimentos, chegando a aproveitar o avesso da tela e a usar drogas alucinógenas. Em 1986, Polke surpreendeu o público da Bienal de Veneza com uma "mistura especial" de tinta de parede para o Pavilhão Alemão, sensível a luz, umidade e temperatura do corpo. Se havia muita gente dentro, a cor ficava azul; se passava alguma nuvem, ficava rosa.
Perplexo com essa pintura "higroscópica" (feita com substâncias que reagem à umidade do ar) e com sua instalação Athanor (Caldeirão dos Alquimistas), o júri homenageou-o com o Leão de Ouro para pintura.
Por outro lado, Polke continuou trabalhando com uma iconografia européia relativamente tradicional. Ele examinou, por exemplo, o quadro Les Vieilles (As Velhas, 1808–12), de Goya, através de radiografias, a fim de tirar suas próprias conclusões pictóricas.
Sua contemporaneidade se revela em seus motivos e procedimentos imagéticos. Depois de criar o burocrata Dr. Bonn (1978) num pano de lã xadrez e abordar o terrorismo da RAF (Facção do Exército Vermelho), Polke realizou trabalhos como Fronteira Americano-Mexicana (1984), Obra Comunitária Conjuntura Leste (1992) ou Fim da Fuga (1992).
Ao que tudo indica, ele quer eliminar a menor suspeita de que seja esteticista. Ao contrário do Polke irônico, o "artista político" Polke costuma ser injustamente esquecido.
Uma prova de sua contemporaneidade também são os experimentos com xerox, nos quais o artista transforma com a maior facilidade reproduções em originais. Polke sabe manipular o procedimento xerográfico com maestria. Ele arrisca movimentos desfocados e dupla exposição, remixando motivos
Em 1995, xerocou para a revista do diário Süddeutsche Zeitung uma série de imagens sobre o tema Kugelsichere Ferien (Férias à Prova de Bala), que ainda se orientam pela malha de pontos, como há 30 anos, mas mesmo assim evidenciam uma "alteração".
Sem motivo de ofensa
"As imagens também ficam ofendidas, se não forem contempladas", diz uma das citações mais propagadas de Polke. Já faz tempo que ele virou os quadros ao contrário sobre o piso da Kunsthalle de Düsseldorf e interditou com uma grade o acesso ao espaço central da sua exposição, intitulada A Arte Liberta.
Laternae Magicae, uma obra tardia feita sobre tecido de poliéster transparente, permite enxergar através dos lados da frente seus respectivos avessos.
No mais tardar desde suas grandes retrospectivas nos Estados Unidos (1990–92), em Amsterdã (1992), Bonn (1997), Berlim (1997) e Humlebaek (2001), todas as faces da produção de Polke receberam a atenção merecida e o entusiasmo do público.
Nos últimos tempos, sua imensa obra – pintura, fotografia, desenho, gravura, edições e objetos – costuma ser exposta separadamente, mídia por mídia, pois os curadores acreditam que esta é a melhor forma de ordenar sua complexa criação.
Enquanto isso, Polke continua produzindo e recebendo prêmios de arte no mundo inteiro. Ele foi escolhido quatro vezes seguidas o artista contemporâneo número um do Capital Kunstkompass, o ranking de artistas da revista alemã de economia Capital. Polke já se consolidou inteiramente como artista e estabeleceu a falta de estilo como uma possibilidade de estilo.