Música
28 de setembro de 2007Todos eles vêm da Bahia. "Temos um casamento de criação e de apresentação. Nossa pegada no samba é irmã; pode não ser da mesma cama, mas é filha da mesma casa."
O tom jocoso é de Antônio Ribeiro da Conceição. Mais conhecido como Bule-Bule, o músico de 60 anos é um dos cantores de repente (mistura de música e poesia improvisada) mais conhecidos da Bahia.
Após um mês na Alemanha, Bule-Bule vai começar a passar frio em Hamburgo, uma vez que o outono já chegou à Europa. Mas só fora de cena. No teatro Fliegende Bauten, ele esquenta o público ao lado de Raimundo Sodré e Mateus Aleluia, dois outros ícones da música baiana. Os três aliaram o nome ao samba de diferentes regiões do Estado.
Os três fazem parte do espetáculo Born To Samba - Ritmo do Brasil, que começou uma turnê pela Alemanha no início de setembro. No ano que vem, o samba baiano ganhará os palcos da Europa, passando, entre outras capitais, por Berlim, Viena e Zurique, para mostrar as origens e a evolução do samba.
Born To Samba reúne três gerações: além dos mestres calejados do samba, o espetáculo mostra o trabalho da banda Bitgaboot, formada por músicos da escola Pracatum, criada por Carlinhos Brown. Uma iniciativa que dá formação musical a adolescentes do bairro do Candeal, em Salvador. A vocalista à frente do Bitgaboot em Hamburgo é Paloma Pinheiro Gomes, de 23 anos.
'Música para um Brasil melhor'
Na estréia do espetáculo, a imprensa alemã destacou o mundo retratado pelas três gerações no palco, "bem distante dos sonhos e do figurino brilhante do carnaval", segundo o semanário alemão Stern. "Quando o homem de estatura baixa e chapéu de couro levanta a voz, sente-se a distância do Brasil, a seca e as provações da vida no campo", escreveu o jornalista Felix Disselhoff, referindo-se a Bule-Bule. Da mesma maneira, o canal de televisão ZDF mostrou a moradia de alguns dos integrantes do grupo no bairro do Candeal.
De fato, Born To Samba quebra alguns estereótipos. Não é comum ver a literatura de cordel brasileira na Europa. Segundo Bule-Bule, o espetáculo foi concebido para conquistar os alemães.
"Há brasileiros que vêm para matar a saudade, mas [Born To Samba] é mais para aclimatar o alemão com esse tipo de espetáculo, [composto por] teatro, dança, muita coreografia, muito movimento", explica o senhor de longa barba branca e sotaque baiano carregado. "Também tem muita letra, muita poesia. A mensagem [do samba] está sendo passada de várias formas, tanto com a linguagem corporal quanto com a linguagem poética e literária", explicou Bule-Bule à DW-WORLD.DE, numa entrevista conjunta com Raimundo Sodré e Mateus Aleluia.
Por outro lado, Born To Samba deixa transparecer alguns clichês associados ao Brasil no exterior, a começar pela descrição do espetáculo no website de divulgação: "Com Born To Samba, você encontra o ritmo quente do samba e os maravilhosos hits da Bossa Nova dos anos 50 e 60".
'O alemão que abaianou'
"Com o nosso suingue, tem que soltar a bunda", brinca Bule-Bule. "Eles [o público, em sua maioria alemães] começam a participar desde que começa a vibração dos atabaques até a vibração dos tambores, até a cadência da palma. Eles entram na cadência da palma, é muito forte a participação da platéia."
O teatro Fliegende Bauten ainda não calculou o total de pessoas que viram o espetáculo, mas a estréia mexeu com o público. "Não foram apenas os brasileiros na platéia que começaram a dançar. Ninguém ficou sentado: aplausos de pé e um entusiasmo ensurdecedor recompensaram, merecidamente, o conjunto de 24 músicos e a opulência do show", escreveu o jornal Hamburger Abendblatt.
Quando falam na Alemanha, os três músicos demonstram entusiasmo e falam de uma relação antiga. "Me tornei o que sou hoje por causa de Roland Schaffner, ex-diretor do Instituto Cultural Brasil-Alemanha", conta Sodré, que integrava o grupo músico-teatral Sangue e Raça, nos anos 70. Fascinado com uma apresentação do grupo, Roland Schaffner convidou o conjunto para montar seu primeiro grande show em 1974. O sucesso não tardou.
A aposentadoria de Schaffner foi até marcada por um espetáculo escrito por Bule-Bule. "O Alemão que Abaianou é uma literatura de cordel que o Márcio Meirelles, atual secretário de Cultura da Bahia, pediu que eu escrevesse", conta Bule-Bule. "Montamos uma peça teatral que foi encenada nos jardins do instituto. Foi a maior aproximação que tive com os alemães".
Caldeirão baiano
Bule-Bule e Raimundo Sodré colaboram constantemente em seus respectivos discos e shows. Mas é a primeira vez que estão juntos no palco, num espetáculo conjunto.
Bule-Bule é conhecido pelo improviso do repente, que alia à literatura de cordel e a sambas rurais – dos quais o exemplo mais presente em sua obra é o álbum Licutixo.
A consagração de Raimundo Sodré no Brasil veio com a identidade nordestina. Seu trabalho mais conhecido é a canção A Massa, um samba de roda considerado antológico. Em 1980, ficou em terceiro lugar no Festival da Nova MPB da Rede Globo. Sodré vendeu mais de cem mil cópias do disco de mesmo nome.
Mateus Aleluia também carrega a história do samba. Aleluia é o único integrante vivo do extinto grupo Tincoãs. Originário de Cachoeira (Recôncavo Baiano), o conjunto fez sucesso nos anos 70 e ainda hoje está presente na memória brasileira.
Aleluia trabalha intensamente com a busca das origens da música brasileira. Para isso, mudou-se para Angola em 1983. "Fomos a Angola como parte dos projetos de solidariedade com os chamados países por trás da Cortina de Ferro", relata Aleluia, cujos filhos também seguiram a carreira musical.
"Ficamos lá [em Angola] com um projeto de investigação cultural, para apurar os vestígios da música angolana na cultura brasileira e vice-versa. Há quatro anos, voltei ao Brasil para fazer um respaldo do trabalho que estamos fazendo em Angola", explica.
Temas sociais
Além do histórico do samba, o show brasileiro em Hamburgo também serve de protesto. "Onde estiver o problema, nós vamos lá e aplicamos um remédio para curar aquela dor momentânea", explica Bule-Bule.
"Um problema [recente] foi o do Raso da Catarina, uma reserva ecológica baiana onde queriam fazer um depósito de lixo atômico. Depois de acabar aquele sofrimento, trabalhamos para uma saúde permanente. O problema é que sempre tem alguém gritando com dor e a gente está sempre correndo atrás de curar aquela dor", diz o repentista.