Quando era proibido mulher jogar futebol no Brasil
24 de julho de 2023Foi um decreto machista e misógino aquele de número 3.199, publicado em 1941 sob o regime do Estado Novo de Getúlio Vargas (1882-1954). E bastante ambíguo também, porque não especificava as modalidades esportivas restritas. Ao mesmo tempo que criava "as bases da organização dos desportos em todo o país", instituindo o Conselho Nacional de Desportos (CND, extinto em 1993), o texto determinava que "às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza".
A proibição do futebol estava implícita, e isso extinguiu um movimento que, segundo especialistas e estudiosos do tema, estava em ascensão, sobretudo no Rio – no subúrbio, havia 15 times de mulheres competindo entre si, conforme relata a historiadora Aira Bonfim, pesquisadora do Museu do Futebol, em seu livro Futebol feminino no Brasil – 1914 a 1941.
"Isso precisa ficar claro: não se proíbe algo que não existe. Então precisamos ressaltar que mulher já jogava futebol na época da proibição", afirma à DW Brasil a historiadora Fernanda Ribeiro Haag, pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP) e professora no Centro Universitário Internacional Uninter. "Nos anos 1930 houve um crescimento intenso de mulheres praticando futebol no Brasil."
Em 1965, já sob outro período ditatorial, o regime militar, o CND deixou clara a proibição. Ao divulgar uma lista de modalidades cuja prática estava proibida para o sexo feminino, o futebol estava incluído.
Fundamentação misógina
O argumento por trás da determinação se apoiava numa visão extremamente conservadora e patriarcal dos papéis de gênero da sociedade. Em sua dissertação de mestrado sobre o assunto, defendida em 2015 na USP, a historiadora Giovana Capucim e Silva ressalta que o foco estava nas práticas esportivas que acarretassem "contato físico intenso ou esforço excessivo".
"Segundo os médicos da época, o potencial materno das moças podia ser prejudicado", descreve a historiadora, contextualizando que "a elas era determinado seguirem aquilo que se entendia como o papel feminino na sociedade: a geração de filhos fortes para a nação".
Em seu trabalho, ela cita a fundamentação do médico higienista Belisário Penna (1868-1939), que defendia que "a mulher encontrará a verdadeira esfera de ação, adequada ao sexo e aos seus deveres, no desempenho das funções do lar, da família, da escola e de tudo quanto tenha relação com esses fundamentos das sociedades moralizadas e sadias".
No livro História das mulheres do Brasil, a historiadora Magali Engel ressalta que "a maternidade era vista como a verdadeira essência da mulher, inscrita em sua própria natureza".
Haag acrescenta que a proibição respaldava "a ideia de que o corpo da mulher não é adequado ao futebol", porque o esporte "fugiria do ideal da feminilidade", cabendo à mulher "ser delicada, frágil e servir à maternidade". "Estava ligada à premissa de que as mulheres pertenciam à esfera privada, e não à esfera pública", explica.
Nesse contexto, em 7 de maio de 1940, um cidadão comum, autor de livros pouco conhecidos sobre moral "e bons costumes", extremamente conservador, decidiu endereçar uma carta aberta, publicada em jornal, ao presidente Vargas. Seu nome era José Fuzeira e ele é considerado o "culpado" pela bizarra proibição.
Fuzeira argumentava que a modalidade feminina do futebol era "um disparate" e que não deveria "prosseguir". Ele ainda argumentava, enfatizando não ter qualquer autoridade "educacional ou científica", que o crescimento da prática no Rio poderia se alastrar pelo país e prejudicar "o equilíbrio psicológico das funções orgânicas [da mulher], devido à natureza que a dispôs a ser mãe".
A partir dali, estudiosos identificam o começo de uma perseguição da imprensa à modalidade feminina, até a assinatura do decreto, em 14 de abril de 1941.
Autoritarismo e gênero
Embora o caso brasileiro tenha sido emblemático, ele seguia uma corrente internacional. "A Inglaterra baniu o futebol feminino na década de 1920, e outros países também tinham essa discussão", comenta Haag. Em determinado período do século 20, o futebol feminino foi restrito a homens também na Alemanha, França e Bélgica, entre outros países.
A historiadora destaca, contudo, esses dois momentos das legislações brasileiras: a norma de 1941 e a de 1965. "Estamos falando de Estado Novo, ou seja, ditadura varguista, e ditadura militar. Cortes de direitos de mulheres e outras minorias, não à toa, costumam ocorrer em contextos autoritários."
Pesquisadora na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), a historiadora Maíra Rosin enfatiza que "no Brasil há uma série de legislações que controlam o corpo feminino". "Essa lei de 1941 é contemporânea à mesma que confina as mulheres [que viviam da prostituição] na zona de meretrício do bairro do Bom Retiro [em São Paulo]. Há um controle feminino muito acentuado e uma interpretação de base eugenista que basicamente diz que as mulheres são feitas para trabalhar no espaço doméstico, que seus corpos não são compatíveis com as práticas esportivas", contextualiza Rosin, à DW Brasil.
A legislação foi abolida em 1979. E não por acaso: a historiadora Haag recorda que era um momento de efervescência social, com o crescimento de movimentos pela redemocratização, de lutas operárias e de afirmação de minorias – dentre elas, a questão feminina.
Consequências perduram
Só quatro anos mais tarde, em 1983, a modalidade feminina do futebol foi regulamentada no país. Para quem estuda o tema, isso trouxe consequências no próprio envolvimento da mulher com o futebol. E é um dos motivos que explica a disparidade entre os times e as seleções masculina e feminina.
Haag vê a modalidade pagando o preço até hoje, com problemas de estrutura, de calendário dos campeonatos e de profissionalização, o que acarreta "defasagem técnica e tática". "As mulheres estão conquistando esse espaço com o pé na porta", comenta. "Mesmo que ainda haja uma continuidade do imaginário que afasta as meninas e as mulheres do futebol."
Em conversa com a DW Brasil, a antropóloga Mariana Mandelli, pesquisadora na USP, diz que "as quase quatro décadas de proibição deixaram marcas profundas nas relações que as mulheres estabeleceram e ainda estabelecem com o esporte, no jogar, no torcer e no trabalhar de forma geral".
"Aquele discurso de que o pé da mulher não foi feito para calçar chuteira e que a prática do futebol iria prejudicar as funções compulsórias da maternidade ainda está presente de maneira geral", avalia ela.
"O esporte mostra o corpo e isso traz uma série de relações, desde o medo de que as mulheres se destaquem mais do que os homens, algo que perdura até hoje", diz Rosin. E a ótica masculina está presente até quando a análise é sobre talentos femininos. A jogadora Marta, por exemplo, considerada a melhor do mundo, costuma ser chamada de "Pelé de saias". "E não é. A Marta é a Marta e ela joga muito bem, joga como uma mulher e é a melhor."
"Sempre se tenta 'masculinizar' o corpo feminino que joga futebol, porque a leitura é que a mulher que joga futebol sai do espaço doméstico dedicado a ela e toma um ambiente que, na visão dessas pessoas, seria exclusivamente masculino", ressalta a historiadora.
No ambiente das torcidas, que os homens buscaram hegemonizar, a misoginia – e, em muitos casos, a homofobia – são consequência dessa mentalidade. Um jogador de time rival ser ofendido de "maricas" ou receber um comentário do tipo "parece uma mulherzinha jogando" não é nada mais do que a ratificação desse pensamento retrógrado e preconceituoso.
Passos grandes já foram dados, e golaços estão sendo marcados, como é caso da visibilidade que está tendo a Copa do Mundo de 2023. Mas, como pondera Mandelli, ainda há um processo longo para "mudar essa cultura" e finalmente equiparar as condições entre homens e mulheres no futebol.