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EsporteGlobal

Como o futebol vem ganhando interesse feminino no Brasil

19 de julho de 2023

Na esteira da valorização do futebol feminino, mulheres brasileiras cada vez mais praticam e assistem ao esporte que é paixão nacional. Elas já são quase metade dos torcedores no país.

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Mulheres e homens com camisa de futebol
Pesquisa Kantar Ibope divulgada no ano passado apontou que mulheres já são 44% dos fãs de futebol no BrasilFoto: Mariana Mandelli

No aniversário de 7 anos de Clarice, comemorado no início deste mês em Bauru (SP), onde ela mora, tudo foi azul e vermelho, e teve até troféu. O homenageado da decoração não foi um personagem de desenho animado ou algum brinquedo da moda. Clarice quis uma festa dedicada ao Paris Saint German (PSG), famoso clube francês de futebol.

Especialista em operações de marketing, Marília Dutra tem 36 anos e joga futebol duas vezes por semana. Seu time se chama Elas Sim Futebol Clube, e as partidas costumam acontecer em Osasco, na região metropolitana de São Paulo. A equipe tem um afirmativo slogan: "Lugar de mulher é onde ela quiser!"

Quase trinta anos separam as infâncias dessas duas apaixonadas por futebol. Nesse meio-tempo, o esporte está deixando de ser um território pretensamente monopolizado por homens e cada vez mais mulheres jogam, torcem e assistem às partidas. 

"Quando nova, [sofria preconceito] quase o tempo todo. Era muito comum ser perseguida por ser uma garota que gostava de jogar futebol", conta Marília, que começou a bater bola com 9 anos e chegou a cogitar se tornar profissional. "A pior parte sempre foi na escola. Além disso [do bullying], os meninos nunca queriam que a gente jogasse com eles."

Entre os apelidos que ela colecionava na adolescência, ela se recorda de Carlos Valderrama, então astro da seleção colombiana, "por causa do futebol e do cabelo enrolado", explica, aludindo à inconfundível cabeleira do ex-jogador.

Clarice não parece enfrentar o mesmo preconceito. Ela começou a se interessar por futebol no ano passado, quando ocorria a Copa do Mundo masculina. No carnaval de 2023, quando sua família viajou para visitar amigos em Itapeva, a garota passou a maior parte do tempo brincando de bola com outras crianças. Voltou encantada: queria treinar na escola.

"Então ela começou a fazer aula, uma vez por semana, na própria escola, onde é a única menina do horário. E outra vez por semana em um campo da cidade, onde tem uma outra menina", conta a mãe dela, a funcionária pública Giovana Franzolin. A própria Clarice diz que não se importa com a maioria masculina. "Antes [de a reportagem perguntar] nunca havíamos destacado esse fato, e ela também nunca comentou. Não parece ser uma questão para ela", comenta a mãe.

O interesse vai além dos treinos. Clarice coleciona figurinhas, assiste aos jogos na TV – "Torço para o São Paulo, para o Brasil e para o PSG", afirma –, fala muito sobre o assunto e sempre que pode está vendo vídeos no YouTube com histórias de jogadores. Quer ser jogadora de futebol quando crescer, "porque a Marta é" – a atleta brasileira conhecida como "rainha do futebol" é uma inspiração para o sucesso. 

Criança segura um troféu durante sua festa de aniversário, com temática de futebol
Tema da festa de aniversário de 7 anos de Clarice foi o PSGFoto: Giovana Franzolin/Privat

Interesse e incentivos

Segundo uma pesquisa Kantar Ibope divulgada no ano passado, mulheres já são 44% entre os fãs de futebol no Brasil. O mesmo levantamento mostrou que 68% da população nacional gosta desse esporte. 

No caso da modalidade feminina, o crescimento do interesse tem algumas explicações. A TV aberta começou a dar mais visibilidade, tanto no noticiário quanto nas transmissões. Em 2019, pela primeira vez, partidas da Copa do Mundo feminina não ficaram restritas aos canais fechados. No Mundial deste ano, que começa nesta quinta-feira (20/07), o destaque deve ser ainda maior. 

Desde 2017, uma determinação da Confederação Brasileiro de Futebol (CBF) obriga que todos os clubes da série A tenham também uma equipe feminina – a entidade já admitiu que estuda estender a regra para as quatro divisões que formam o Campeonato Brasileiro. 

Mas as disparidades ainda são imensas, tanto em patrocínios quanto em salários. A jogadora Marta, por exemplo, apesar de ser a principal estrela da seleção brasileira e ter sido eleita seis vezes a melhor do mundo – um dos muitos recordes que ela detém, considerando tanto o futebol feminino quanto o masculino – tem um salário 125 vezes menor do que Neymar, astro brasileiro do futebol masculino que jamais chegou ao posto de melhor do mundo. De acordo com a Forbes, o atacante fatura 50 milhões de dólares por ano; Marta embolsa 400 mil dólares.

A jogadora brasileira Marta
Marta disputou cinco edições de Jogos Olímpicos e Copas do Mundo, em que tem o maior número de gols entre mulheres e homensFoto: Daniela Porcelli/ZUMAPRESS.com/picture alliance

No Ministério do Esporte, a pauta da valorização do futebol feminino está na mesa. A ministra Ana Moser declarou que, durante sua viagem para a Nova Zelândia para acompanhar os jogos da Copa – ela embarcou na última segunda-feira –, pretende realizar articulações para que o Brasil se torne o primeiro país sul-americano a sediar o Mundial feminino, já na edição seguinte, em 2027. 

Em março, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou um decreto instituindo a estratégia nacional para o futebol feminino. A ideia é que o ministério trace medidas que visem promover mais investimento, descobrir novos talentos e também incentivar a maior presença de mulheres na gestão, na arbitragem e na direção técnica. O combate à discriminação deve ser uma das prioridades. 

De acordo com o decreto, o Ministério do Esporte, em conjunto com a CBF e os clubes, tem até o dia 30 deste mês para apresentar o primeiro levantamento sobre o tema. A lei também prevê a elaboração de relatórios anuais visando aprimorar a estratégia nacional. 

Time amador de futebol feminino
Marília Dutra (no centro, agachada e vestida de preto) e seu time Elas Sim Futebol ClubeFoto: privat

No campo e nas arquibancadas

A corintiana Marília lembra que, quando adolescente, "jogava com os meninos porque era o que tinha". "Eu joguei almejando ser profissional até os 17 anos, mas era outra realidade para o futebol feminino na época, ele praticamente não existia, as peneiras eram escassas", pontua. "Joguei na faculdade em jogos universitário e isso foi até os 22. Lesionei algumas vezes e, depois disso fiquei 13 anos sem jogar. Voltei em agosto de 2022, e só para diversão agora, sem estresse, sem pressão."

Com a recente valorização do futebol feminino no Brasil, ela mudou seu foco: agora torce mesmo com ênfase é por elas. "Nosso time feminino [o Corinthians] está voando!", diz. 

Doutoranda pela Universidade de São Paulo (USP), a antropóloga Mariana Mandelli estuda como as mulheres torcem. Palmeirense, ela acompanha de perto seu time e, desde o ano passado, está seguindo "com assiduidade o futebol feminino do Palmeiras". 

"A gente percebe uma grande diferença de público, de clima e de formas de torcer nesses jogos de futebol feminino, comparado ao masculino", contextualiza a antropóloga. "Isso se deve a vários fatores."

"Por ser um ambiente majoritariamente masculino onde os códigos simbólicos e materiais são códigos simbólicos e materiais das masculinidades, isso acabou criando, no decorrer do tempo, um ambiente totalmente regido e comandado por homens", analisa. 

Mulheres e homens com camisa de futebol
Foto feita pela antropóloga Mariana Mandelli, que estuda como as mulheres torcemFoto: Mariana Mandelli

As mulheres vêm mostrando que têm direito a ocupar esses espaços. Mandelli vê uma presença crescente de pautas identitárias nas arquibancadas, tanto no futebol masculino quanto no feminino. "Observo uma maior assiduidade de mulheres nos estádios, com a constituição de coletivos de mulheres e outros coletivos de torcedores, alguns com bandeiras políticas, como causas LGBTQIA+, torcedores antifascismo, torcedoras que se declaram feministas. Há um movimento de politização de torcedores, e isso é algo recente."

A pesquisadora lembra que esse movimento feminino não se restringe nem às torcidas nem aos campeonatos jogados por mulheres. "Há uma mobilização crescente porque temos mais mulheres falando, pensando e trabalhando no e com o futebol. Isso tudo fará com que esse ambiente se torne menos tóxico, menos agressivo para as mulheres", argumenta, lembrando a presença feminina também nas comissões de arbitragens e na imprensa, sobretudo nas transmissões televisivas.