Prós e contras da descriminalização do porte de maconha
Publicado 12 de maio de 2024Última atualização 20 de junho de 2024O debate em torno da descriminalização do porte de maconha acirrou ainda mais a já conflituosa relação entre o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso Nacional. Ministros e parlamentares analisam propostas diferentes sobre o mesmo tema, e o andamento em cada uma das instituições poderá determinar o futuro do debate sobre as drogas no Brasil.
No STF, o julgamento iniciado em 2015 já foi interrompido por pedidos de vista (quando um ministro pede mais tempo para analisar o assunto) em três oportunidades. Em março de 2024, após o presidente da corte suprema, Luís Roberto Barroso, dar continuidade à análise, o ministro Dias Toffoli pediu vista, e o julgamento foi interrompido novamente. Ele deve ser retomado nesta quinta-feira (20/06).
A avaliação no Supremo vai definir um critério objetivo para aplicação do artigo 28 da Lei de Drogas, de 2006, que criminaliza a posse (ter) e o porte (levar consigo) de qualquer droga – a maconha não é citada especificadamente na lei, apesar de ter se tornado objeto da análise na corte. Para alguns juristas, essa jurisdição fere o artigo 5º da Constituição, que determina serem invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas.
O artigo 28 não prevê prisão pelo porte ou produção para consumo próprio, mas sanções. No entanto, não há um critério objetivo que diferencie o tráfico de drogas do consumo próprio. Na prática, quem decide isso são policiais, Ministério Público ou juízes, em cada ocorrência.
Até o início de março, o placar no Supremo estava assim: cinco ministros (Gilmar Mendes, Edson Fachin, Barroso, Alexandre de Moraes, Rosa Weber) votaram a favor da descriminalização do porte de maconha para consumo próprio.
Por outro lado, três ministros (Cristiano Zanin, Kassio Nunes Marques e André Mendonça) votaram contra a descriminalização.
O debate no Congresso
No início de abril, em reação ao avanço da matéria no Supremo, o Senado decidiu pautar a PEC das Drogas, uma proposta de emenda à Constituição que determina como crime portar ou possuir qualquer quantidade de droga, mesmo que para consumo próprio. Na ocasião, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), disse no plenário que "a descriminalização da maconha não pode ser feita por decisão judicial".
A PEC foi aprovada no Senado em meados de abril e seguiu para a Câmara dos Deputados, onde também recebeu o aval da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), em junho. A proposta será agora analisada em uma comissão especial e, se aprovada, seguirá para votação em plenário.
"De certa forma, há um embate entre os poderes Legislativo e Judiciário", comenta o professor de direito constitucional Rodrigo Brandão, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). "Embora o Legislativo tenha primazia em regular a matéria, a ausência de lei com critérios objetivos para distinguir usuários de traficantes tem ensejado inconstitucionalidades, por violação aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da igualdade e por dificultar o combate às facções criminosas", afirma.
O jurista Cristiano Maronna, diretor da Plataforma Justa, especializada em segurança pública e acesso a dados da Justiça, concorda que o STF atuou no vácuo deixado pelo Congresso. "A análise sobre a constitucionalidade da lei que criminaliza a posse de uso de drogas para consumo pessoal é uma função típica de cortes constitucionais, como o STF. Outras cortes constitucionais fizeram o mesmo e declararam os respectivos dispositivos legais inconstitucionais. Isso ocorreu na Colômbia (duas vezes), na Argentina, no México e na África do Sul", afirma.
Brandão avalia ainda que o debate no STF destaca a violação do artigo 5º da Constituição, que ressalta que "são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação".
"É a ofensa à dignidade como autonomia: o direito de cada um viver a sua vida de acordo com as suas decisões", diz Maronna. Para ele, há também violação do princípio da igualdade, pois a falta de uma distinção clara entre usuário e traficante acaba prejudicando sobretudo negros e pobres, que não raro são considerados traficantes em situações em que brancos e ricos são considerados usuários. A PEC piora ainda mais essa situação, diz.
E esse foi um dos argumentos utilizados por Moraes ao defender a descriminalização do porte. "Para um analfabeto, por volta de 18 anos, preto ou pardo, a chance de ele, com uma quantidade ínfima, ser considerado traficante é muito grande. Já o branco, mais de 30 anos, com curso superior, precisa ter muita droga no momento para ser considerado traficante", disse o ministro.
Barroso apresentou argumento semelhante. "Se um garoto branco, rico e da Zona Sul do Rio é pego com 25 gramas de maconha, ele é classificado como usuário e é liberado. No entanto, se a mesma porção é encontrada com um garoto preto, pobre e da periferia, ele é classificado como traficante e é preso", exemplificou o ministro do STF.
O senador Efraim Filho (União-PB), relator da PEC no Senado e contrário à descriminalização, afirma que a lei não vê cor ou condição social e que, se isso acontece na prática, deve-se corrigir a aplicação da lei. "Cabe, por exemplo, ao CNJ [Conselho Nacional de Justiça] chamar os juízes para fazer seminários e orientar, aplicar de forma correta, tratar o usuário sem encarceramento e tratar o traficante com o rigor da lei", defendeu.
Qual quantidade diferencia o usuário do traficante?
Um dos pontos centrais na discussão no STF é a determinação da quantidade de maconha que caracteriza consumo individual. Mendes, Moraes, Weber (hoje aposentada) e Barroso a fixaram em 60 gramas ou seis plantas fêmeas. Fachin não fixou uma quantidade para a definição de usuário e argumentou que isso cabe ao Legislativo.
Já os ministros Zanin e Nunes Marques limitaram a quantidade que caracteriza uso em 25 gramas ou seis plantas fêmeas. Mendonça optou por 10 gramas.
Defensor da PEC, o senador Rogério Marinho (PL-RN) afirmou que a determinação da quantidade que caracteriza consumo deve ser feita por autoridades que estão na ponta do sistema de Justiça. "É quem faz de fato a apreensão, quem está com a mão na massa e não quem está num gabinete com ar refrigerado", diz o senador.
O advogado criminalista Erik Torquato, membro da Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas, diz que a determinação de uma quantidade não deveria ser o foco da análise do Supremo. "O que o STF foi chamado a fazer é uma análise de compatibilidade do artigo 28 da Lei de Drogas com a Constituição ", critica, argumentando ainda que determinar se uma pessoa é usuária ou traficante apenas a partir da quantidade é um erro.
"Essa articulação que está acontecendo, de construir uma tese a partir da dosagem, é uma tentativa de atender a um anseio político que nada tem que ver com a tese inicial do julgamento, que é a garantia de direitos fundamentais protegidos na Constituição e que são violados pela norma que criminaliza a conduta do usuário", prosseguiu Torquato.
Já o professor de direito penal Thiago Bottino, da FGV-Rio e da Unirio, afirma que a definição da quantidade "reduziria a subjetividade dos agentes públicos na avaliação de quem é traficante ou usuário" e que "critérios objetivos trazem maior igualdade de tratamento dos cidadãos, independentemente de raça, condição social ou idade".
Assim, ele não vê problema em o Supremo, "por ter julgado centenas de milhares de casos envolvendo drogas", fixar um critério que oriente o funcionamento do sistema de Justiça, "como já ocorre toda vez que consolida jurisprudência sobre algum tema."
Questão racial
Defensores da descriminalização argumentam que ela ajuda a diminuir o encarceramento de jovens, sobretudo pretos e pobres, abordados com pequenas quantidades de drogas. Já os contrários à proposta dizem que a descriminalização aumentará o consumo de substâncias proibidas entre os jovens.
Uma pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Avançada (Ipea) de outubro de 2023 mostra que o número de réus negros em crimes por tráfico de drogas é duas vezes superior ao de brancos.
De acordo com o levantamento, a maioria dos réus processados por tráfico de drogas é do sexo masculino (86%), tem até 30 anos (72%) e possui baixa escolaridade (67% não concluiu o ciclo de educação básica).
Para Bottino, a atual aplicação da Lei de Drogas faz com que uma parte dos usuários seja tratada como traficante, sobretudo jovens negros, de periferia e com baixa escolaridade, em razão da falta de critérios diferenciadores.
Ele afirma que a Lei de Drogas "é hoje o principal vetor encarcerador no Brasil", ressaltando que o país tem a terceira maior população carcerária do mundo, com cerca de 745 mil presos – atrás apenas dos EUA (2,1 milhões) e da China (1,7 milhão).
Para Bottino, o usuário de drogas não deveria ser tratado como criminoso porque sua conduta não causa danos a outras pessoas. Polícia, Ministério Público e Judiciário deveriam dedicar seu tempo e recursos apenas às condutas mais graves. "É possível fazer um paralelo com o trânsito: quem ultrapassa a velocidade é multado, mas isso não é um crime. Se ultrapassar o sinal e atropelar alguém, aí sim é crime. Da mesma forma, portar maconha não deveria ser crime. Se praticar um crime sob efeito da droga, isso poderia agravar a pena."
O ativista Dudu Ribeiro, da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas, diz que o debate sobre a política de drogas é uma questão racial. "A lei, como está hoje, produz um massacre racial."
"Não podemos esquecer que é ano eleitoral e isso está [no âmbito] da pauta dos costumes. Mas é evidente que o debate supera isso [a política de drogas]. Trata-se do encarceramento, de uma política de morte e do direito individual garantido pela Constituição", diz.
Mesmo se a PEC for aprovada no Congresso, ela ainda poderá ter sua constitucionalidade questionada no próprio STF.