Por que tanto barulho em torno do gás natural?
6 de janeiro de 2022Há muito tempo o gás natural não serve apenas para cozinhar, mas também para aquecer casas e empresas durante o inverno, além de ser cada vez mais utilizado para produzir eletricidade. Somente nos Estados Unidos, em 2020 esse combustível fóssil respondeu por 34% do consumo de energia e foi a principal fonte de geração de eletricidade.
Agora, à medida que o mundo caminha para a eliminação gradual da energia provinda do carvão, essas três letras são saudadas como um herói climático em plena expansão. Mas a afirmativa procede?
A lenda do gás limpo
Na verdade, não. Ele não é uma energia limpa, como a Comissão Europeia deu a entender no início de janeiro, ao propor classificar o gás e a energia nuclear como bons para o meio ambiente.
É verdade que o gás gera cerca de 50% menos emissões de CO2 do que o carvão mineral quando produz eletricidade, mas ele também provou ser a fonte de gases do efeito estufa que mais cresceu no planeta na última década – uma trajetória que deve continuar.
Na União Europeia, o gás é a segunda maior fonte de emissões carbônicas depois do carvão, e representa cerca de 22% da produção global de CO2.
E isso não é tudo: o público ouve com insistência cada vez maior que o gás é necessário à transição para um futuro de energia limpa. A teoria é que, sendo mais limpo do que outros combustíveis fósseis, ele ajudaria a suprir o déficit de energia causado pela iminente e eliminação progressiva do carvão.
A realidade, contudo, é que, enquanto combustível fóssil, o gás natural também causa mudanças climáticas. Por isso, o Partido Verde Europeu ameaça processar a Comissão Europeia por sua pressão para classificar como sustentáveis alguns investimentos em gás. Enfim: o gás natural já está sendo descrito como o "novo carvão”.
Metano e insegurança energética
O gás natural é um hidrocarboneto combustível composto principalmente de metano, que é cerca de 28 vezes mais poluente do que o dióxido de carbono e propenso a vazar de gasodutos e tubulações.
É um combustível fóssil não renovável encontrado nas profundezas do solo, em meio ao xisto e outras rochas, e muitas vezes na proximidade do petróleo. É usado para gerar energia, mas também como matéria-prima química para plásticos e fertilizantes, e a atual corrida ilimitada por esse material pode resultar no esgotamento das reservas de gás natural dentro de cerca de 50 anos.
Portanto o conceito de usar o gás como "combustível-ponte" para um futuro de energia limpa não é um raciocínio de longo prazo: um dia, não muito longínquo, ele se esgotará. Nesse meio tempo, alega-se, ele traria segurança energética à humanidade.
A dificuldade de obter gás explica a forte dependência da Europa em relação à Rússia por esse combustível fóssil. Como ele é bombeado e enviado para longas distâncias, a imensa infraestrutura exigida aumenta seu custo, e também a quantidade de CO2 emitido.
A geopolítica é outro problema: o atraso para finalizar a obra e conectar o gasoduto Nord Stream 2 da Rússia à Alemanha, em meio a crescentes ameaças de guerra na Ucrânia, é um exemplo. Está tudo pronto, mas o gás não é enviado. Os preços do combustível disparam à medida que o fornecimento diminui.
A própria Alemanha é tão dependente do gás para combustível e aquecimento que está aberta a fornecimentos dos Estados Unidos, e tem planejado construir novos terminais, extensos e custosos, para receber remessas de gás natural liquefeito (GNL).
O problema é que as importações incluiriam gás obtido por fraturamento, ou fracking. Consistindo na extração de gás ou petróleo de de rochas e xistos em reservas subterrâneas, esse processo é nocivo ao meio ambiente, por envolver produtos químicos tóxico.Além disso, libera grande quantidade de metano e é potencialmente um inimigo do clima ainda maior do que o carvão.
Muitos países europeus, como a Alemanha, proibiram a prática, mas um dia o GNL americano extraído por fracking pode vir a substituir o gás russo.
Por que não abandonar simplesmente o gás?
A União Européia acredita que, com o tempo, seja possível remanejar a infraestrutura do gás natural, nova e já existente, para combustíveis "de baixo carbono", como hidrogênio e biogás. Pelo menos esse era o tom de uma recente proposta da Comissão Europeia para descarbonizar os mercados de gás.
Em teoria, tudo parece em ordem. No entanto: a) isso significaria queimar muito hidrocarboneto no curto prazo; e b) gases limpos como o hidrogênio "verde" continuam sendo um sonho, em parte porque só podem ser produzidos com as fontes renováveis necessárias para alimentar o processo de transição energética.
Assim, críticos apontam que os debates sobre a "transição verde do gás" têm sido um passe para empresas de combustíveis fósseis fazerem uma "lavagem verde" (greenwash) de seus negócios danosos ao clima.
"O gás natural não é um combustível de transição. É um combustível fóssil", pontificou Bill Hare, diretor executivo da ONG Climate Analytics, durante a COP26, em novembro, na Escócia. Para ele, o gás deve ser tratado como carvão e abandonado gradativamente, o mais rápido possível.
Qual é a alternativa à "ponte de gás"?
Em 2021, especialistas afirmaram que a energia solar era atualmente a "eletricidade mais barata da história", e que até 2050 ela e a eólica seriam capazes de cobrir 100 vezes a demanda mundial de energia.
Portanto há alternativas. Ainda assim, a Austrália está anunciando uma "recuperação da pandemia movida a gás", e a Europa faz campanha veemente por sua "ponte de gás" para um futuro energético limpo e radiante.
Há quem diga que essa promoção exagerada do gás natural é uma receita para um "impasse do carbono", que apenas atrasará a transição energética. Pois todo o capital e a infraestrutura investidos nessa transição à base de gás implicam o combustível fóssil continuar sendo extraído, a fim de compensar o investimento.
Por outro lado, esse mesmo dinheiro poderia ter sido alocado em energias renováveis que descarbonizariam diretamente o fornecimento de energia. E seria energia com que, ainda por cima, se pode cozinhar.