Osesp na Filarmônica de Berlim: quando a música é o que importa
22 de outubro de 2013Poucos minutos antes da apresentação da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo na sala da Filarmônica de Berlim, a regente Marin Alsop falava aos instrumentistas: "Não há por que ter medo. Vocês merecem estar aqui, vocês são músicos fantásticos. It's all about the music – O que importa é a música."
São palavras de encorajamento e apreço como as de um amigo mais experiente e seguro, a outro momentaneamente necessitado de confirmação. Para os músicos, é a estreia na Philharmonie, enquanto a maestra já se apresentou naquele palco anos antes, à frente da Bournemouth Symphony Orchestra.
O consenso entre Alsop, instrumentistas e organizadores da orquestra é que o concerto de segunda-feira (21/10) na disputada sala alemã, é um dos pontos altos da turnê pela Europa – que, em três semanas, passa por França, Suíça, Áustria, Alemanha, Irlanda, para encerrar-se em Manchester, Inglaterra, em 28 de outubro.
Um ápice e, ao mesmo tempo, mais um passo significativo num projeto consequente, expressado pelos diretores Arthur Nestrovski e Marcelo Lopes: a médio prazo, estabelecer a Osesp como principal corpo sinfônico profissional da América Latina.
Duas salas e a busca da acústica ideal
Sozinho, o prestígio da própria sala já é um fator para a relevância especial do evento. A Berliner Philharmonie foi criada "para" o então titular da orquestra Filarmônica de Berlim, o visionário e autocrático maestro Herbert von Karajan – com base num projeto do arquiteto Hans Scharoun (1893-1972). Desde então, é raro o astro da música erudita que não passou pelo palco, que completa 50 anos de existência em 2013.
Indiscutivelmente revolucionária à época, a estética modernista do prédio – com seu exterior amarelo-escuro e um perfil que, de acordo com o ângulo, evoca um iate, um pagode oriental, uma tenda – é controvertida, tendo lhe valido apelidos como "Circo Karajani". Por outro lado, a acústica da sala de concertos é objeto de louvor unânime de artistas e público: a partir de quase qualquer ponto nela, mesmo para o espectador sentado atrás do palco, a clareza e presença sonora são praticamente palpáveis.
Acústica é um assunto que ocupa a Osesp no momento, como seu gerente, Joel Galmacci, revelou à DW. A sonoridade do local de apresentações da orquestra, a Sala São Paulo, já é considerada excelente, sendo comparada aos tradicionais Musikverein de Viena e Concertgebouw de Amsterdã, por exemplo. No entanto, o projeto paulistano, que inclui diversos elementos acústicos móveis, lança o desafio de encontrar a configuração "ideal", que contribua ao máximo para o resultado artístico final.
Esse processo de pesquisa é complexo e delicado – até por se apoiar numa boa dose de subjetividade –, tendo envolvido ensaios de orquestra com três horas de duração, só para afinação acústica. No entanto, já no fim da primeira parte do concerto em Berlim, Galmacci anunciava: "Depois de escutar a Osesp aqui, nós temos um parâmetro de qualidade, é um modelo a se perseguir".
Música de câmara em massa
Não é raro a relação entre regente e músicos de orquestra ser pautada no autoritarismo, hostilidade recíproca e chicanas, com berros de uns, lágrimas de outros. O fenômeno está registrado em inúmeras piadas e ditos tão chistosos quanto implacáveis. Uma amostra: "Para que serve um maestro? – Para resolver os problemas que, sem a presença dele, não existiriam."
Entretanto, presenciar um ensaio ou concerto da Sinfônica de São Paulo com Marin Alsop prova que também é possível reverter essa dinâmica, tomar como ponto de partida a confiança e respeito mútuos. É o convite "vamos fazer isso juntos", no lugar do sinistro "agora eu vou obrigar vocês a fazerem o que eu quero".
Traduzindo em termos musicais: a impressão é de uma civilizada, porém intensa, sessão de música de câmara, um jogo entre parceiros equivalentes, que se escutam mutuamente. Sem disputa de egos; nível de estresse emocional, zero. E isso, numa profissão altamente competitiva e que exige excelência absoluta. Aqui, "it's all about the music".
Neste sentido, é, de fato, difícil imaginar um parceiro mais perfeito para o "trio" do que Nelson Freire, que acompanhou a Osesp em quase toda a turnê europeia. Mal se nota, ele já está ao piano, concentração pura, ensaiando para si, alheio à algaravia orquestral em torno.
Guerreiro minimalista
A presença física do pianista irradia dignidade e parcimônia. Nada indica a carga de distinções e adulações com que o mundo da música erudita o cumula. Freire não desperdiça palavras: praticamente toda comunicação com a regente se dá através da música: Alsop pede, ele responde em sons. Se verbaliza algo, só a interlocutora percebe, tão monossilábicas e raras são as suas intervenções.
E no entanto, diante do público, esse homem, que três dias antes completara 69 anos, domina como um guerreiro o Concerto para piano e orquestra nº 4, de Ludwig van Beethoven. Com força minimalista, não existe extremo de lirismo ou de violência que o mineiro de Boa Esperança não alcance sem mover um músculo a mais, sem mudar a expressão. E Alsop-Osesp o secundam com placidez clássica ou furor beethoveniano, segundo as circunstâncias.
Apesar das décadas de fama de Nelson Freire, não seria de espantar se boa parte do público internacional reunido na Filarmônica o estivesse assistindo pela primeira vez. Afinal, a porcentagem de jovens espectadores era grande, e os tempos tendem a consagrar o show e o exibicionismo pianístico – na linha do chinês Lang Lang, para citar um exemplo.
Então, se a plateia não conhecia o pianista, tão mais sincero e grato foi o longo aplauso ao fim do Concerto op. 58. Reconhecimento que – encerrando a primeira parte do programa – o versátil virtuose quitou com dois bis surpreendentes, ambos transcrições de obras do século 18: uma para órgão – o Prelúdio em sol menor BWV 535, de Johann Sebastian Bach –, outra para flauta e cordas – a Dança dos Espíritos Abençoados, da ópera Orfeu e Eurídice, de Christoph Willibald Gluck.
Pompa sem obviedade
Antes, a abertura da noite coubera a Terra Brasilis, de Clarice Assad. Essa "fantasia sobre o Hino Nacional Brasileiro" acompanha a dupla Osesp-Alsop desde o primeiro concerto da norte-americana como diretora musical da orquestra, em março de 2012.
Em seus sete minutos de duração, a peça estabelece a compositora carioca como uma orquestradora inspirada e segura de si. A partir de um "caos primordial" (evocativo da mata tropical virgem?), ela faz emergir fragmentos da melodia de Francisco Manuel da Silva, aí as células vão se aglutinando, transformando-se em frases; ritmos populares despontam.
Cresce o temor no ouvinte mais crítico do nacionalismo compulsivo de parte da música moderna brasileira: será que a coisa vai – mais uma vez – acabar em samba? Ou numa apoteose patriótica? Alarme falso: aqui, Assad se revela também uma estrategista musical hábil: ela dá o esperado final bombástico a seu mini-poema sinfônico, mas sabendo contornar a gratuidade.
Profecia realizada
A verdadeira apoteose da noite veio na forma da Sinfonia nº 5 de Serguei Prokofiev (1891-1953), que ocupou toda a segunda metade do programa. A vasta obra em quatro movimentos – já lançada pela gravadora Naxos em CD e bluray-audio – oferecia ao "duo" a oportunidade de explorar suas reservas mais extremas de expressão e sonoridade, e a chance não foi desperdiçada.
Da filigrana sonora ao tutti ensurdecedor, do primeiro uníssono dos sopros ao moto perpétuo maníaco do movimento final, do lamento patético aos fogos-de-artifício, a Osesp provou que seu lugar é, desde já, entre as excelentes orquestras internacionais – sem nem precisar lançar mão do "bônus de sul-americana".
Mais uma vez, o público não poupou entusiasmo e, ao que tudo indica, se os músicos vindos de São Paulo convenceram, foi mesmo por suas qualidades. Afinal, frequência brasileira à parte, era aparentemente elevada a incidência de espectadores que tinham ido parar no concerto sem nenhuma expectativa definida.
Este era o caso de dois rapazes e uma moça argentinos, que só queriam conhecer a sala da Filarmônica. Ou das quatro jovens sul-coreanas, de passagem por Berlim, que tinham ouvido que a regente americana era "muito boa". Um casal alemão mais maduro, por sua vez, ganhara os ingressos de uma amiga.
Ao fim, todos se diziam felizes com aquele presente do acaso, prometendo, a partir de agora, não perder uma oportunidade de rever a orquestra de São Paulo, onde quer que estejam. Uma vitória da arte pura e simples, e prova de que Marin Alsop não se enganara em sua profecia: "O que importa é a música."