"Um regente pode transformar vidas"
26 de agosto de 2012A regente norte-americana Marin Alsop iniciou em março seu mandato de cinco anos à frente da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp). Com o primeiro concerto na Sala São Paulo, dava-se a partida oficial para uma colaboração musical promissora.
Enquanto o conjunto sinfônico é um dos mais tradicionais e prestigiados do Brasil, Alsop faz parte do seleto ranking internacional dos grandes maestros. Não numa categoria especial "mulher regente", mas em absoluto pé de igualdade com seus bem mais numerosos colegas do sexo masculino.
Pouco após o lançamento de seu primeiro CD – abrindo uma integral das sinfonias de Serguei Prokofiev –, a dupla Osesp-Alsop partiu para sua primeira turnê internacional. Entre um concerto no festival BBC Proms, de Londres, e outro no Concertgebouw de Amsterdã – uma das mais conceituadas salas do mundo – a Deutsche Welle entrevistou a regente na cidade de Wiesbaden.
A disputada apresentação no salão nobre do spa Kurhaus fez parte do Rheingau Musik Festival. O evento, atualmente em sua 25ª edição, destaca-se por apresentar música de alto nível em ambientes de interesse arquitetônico – mosteiros, palácios, antigas adegas – da bela região vinícola no sudoeste alemão.
Marin Alsop fala sobre sua experiência com a positividade dos brasileiros; as belezas ocultas de São Paulo, e sua descoberta da música nacional. Ele aborda também preconceitos e pioneirismo: os paralelos entre ocupar o pódio como mulher e as dificuldades que uma orquestra – originária de um país ainda sem grande tradição sinfônica – encontra para se impor num cenário musical praticamente saturado.
DW-Brasil:Você está completando seis meses como maestra titular da Osesp. Qual é a sua avaliação desse primeiro período?
Marin Alsop: Parece ser muito mais, de certo modo. É como quando você conhece alguém e diz "Oh, a gente já deve ter sido amigo há muito tempo atrás". Porque a sensação é muito confortável, há um maravilhoso rapport e química com os músicos e com o público.
Então, a sensação é bem natural, e acho que fizemos excelentes progressos. Mas, mesmo no primeiro dia, a impressão era de que podíamos partir imediatamente para o trabalho, para trabalhar duro, realmente visando um nível artístico muito mais alto. Eu acho que a primeira gravação [Serguei Prokofiev: Sinfonia nº 5 e O ano 1941, pela Naxos] já mostra isso. A sensação é ótima! É como se fosse muito mais do que seis meses.
Você está frequentemente em São Paulo? Consegue se sentir em casa?
Bem, agora eu passo provavelmente 12 semanas [ao todo, por ano] em São Paulo. Eu estou aprendendo português – "Estudo português"... –, mas é difícil, quando você não está lá todo o tempo. Mas me sinto muito bem-vinda e muito bem acolhida, "abraçada" pela comunidade, pelo público e pelos músicos.
Acho que São Paulo é uma cidade onde é difícil se sentir em casa, por ser, de início, tão pouco convidativa. É tanto concreto em volta... Não consigo sentir isso como "braços abertos". Mas o que aprendi, até agora, é que São Paulo é uma cidade cuja beleza está no interior, não no exterior. Então, há todo tipo de coisas bonitas para se descobrir, belos museus, bela arte. Mas você tem que entrar, tem que abrir as portas e estar do lado de dentro – e isso é o que eu estou começando a fazer agora.
A Osesp é para você simplesmente uma excelente orquestra internacional, ou há momentos em que pensa: "Não há dúvida; estou trabalhando com uma orquestra brasileira"?
Eu não sei. É tão difícil, pois aí você considera: "Oh, estou simplesmente pensando de forma muito estereotipada". Mas posso dizer, sem hesitar, que estou muito feliz de trabalhar com meus músicos da Osesp porque eu os percebo como sendo gente feliz. Essa é uma generalização enorme, óbvio, mas eu encontro uma atmosfera muito positiva. Não sei se esta expressão se usa, mas é atitude "can do" ["eu posso fazer"], em oposição a tantos outros lugares aonde vou, onde todo o mundo está deprimido, "para baixo", e a atitude é "não posso": "Não, não podemos, não fazemos isso". E eu detesto trabalhar nesse tipo de ambiente, é tão contrário a ser um artista.
Eu sinto com a Osesp – e talvez seja um estereótipo de Brasil, mas eu realmente sinto – esse otimismo, essa coisa ensolarada, uma alegria pelo que estamos fazendo. Não é que não haja problemas, e que eles não tenham suas dificuldades. Mas acho que, fundamentalmente, o copo está muito mais do que "meio cheio" no Brasil – em contraste com "meio vazio", em todos os outros lugares.
E aí é que entra o "can do"...
Exatamente! Ninguém jamais diz para mim: "Ah não, não dá". A resposta é sempre: "Oh, vamos pensar a respeito" – mesmo se decidimos depois que não é possível. Gosto do processo de se dizer: "Vamos dar uma olhada, vamos ver o que se pode fazer".
No Festival de Rheingau, você e a Osesp apresentam uma peça relativamente rara de Heitor Villa-Lobos, o Mômoprecóce, tendo como solista o grande pianista brasileiro Nelson Freire. Villa-Lobos era genial, mas sabe-se que a escrita musical dele nem sempre é perfeita, chegando ao ponto de algumas orquestras internacionais se recusarem a incluí-lo no repertório. Você tem encontrado esse tipo de dificuldade?
Não sei. Gosto dessa peça. Não tenho muita experiência pessoal em reger peças de Villa-Lobos – fora algumas poucas, das mais famosas. A orquestração dele é por vezes um desafio, nem sempre é confortável para os instrumentos. Mas acho que para esta peça é muito eficaz. É muito colorida, muito imaginativa, e... Eu gosto, sabe? No meio tem um ritmo de samba. É muito cativante.
Mas Villa-Lobos é um compositor que você gostaria de conhecer melhor?
Ah sim, acho que sim! E estar no Brasil abre uma porta para todo tipo de música que eu nem sabia que existia, e que me fascina. A música de Camargo Guarnieri, por exemplo, cuja Abertura Festiva vamos tocar. Ou Francisco Mignone, Almeida Prado... São todos compositores com um ponto de vista muito definido, que eu nunca havia vivenciado antes.
Eu sou também uma grande paladina da música norte-americana, especialmente do jazz. E eu acho que esse momento na música norte-americana que eu adoro – a conexão entre música popular e erudita, Leonard Bernstein, George Gershwin – é muito semelhante a essa fusão da tradição popular brasileira com a música erudita. Então, eu sinto uma conexão de verdade e uma afinidade em relação à música brasileira.
É quase inevitável deixar de tocar a questão do gênero: a presença feminina no pódio. Está claro, há o perigo de supervalorizar esse tema. Mas o fato é que hoje, em pleno século 21, você ainda é uma exceção: uma mulher no primeiro escalão da regência orquestral. Pode-se dizer que a situação evoluiu desde os seus tempos de estudante até hoje?
A questão da "mulher regente" fica muito cansativa – tenho certeza que você consegue entender. Porque não importa o que você diga, não vai ser toda a resposta. Eu penso que hoje há mais oportunidades. Mas, se você olha para as principais orquestras do mundo, não há mulheres. Eu ainda sou a única. Portanto: ainda há um problema.
Então, o que eu tento fazer é criar oportunidades – para o público, os músicos, os gerentes, para as comissões de direção verem mais mulheres. Eu tenho uma bolsa [a Taki Concordia Fellowship] para regentes emergentes. Elas ganham uma bolsa para trabalhar comigo por dois anos. Mas outros maestros me apóiam. Tenho quatro ou cinco diretores musicais que também acolhem a vencedora. E, por coincidência, a atual bolsista da Taki é brasileira, o nome dela é Alexandra Arrieche. Ela é do sul, e graças à fellowship está atualmente estudando em Aspen neste verão, e vai se mudar para Baltimore para ser minha maestra assistente e estudar em Peabody.
Em termos de preconceitos, você percebe paralelos entre "uma mulher regendo" e "uma orquestra do Brasil"?
É claro. Porque as pessoas vêm com um ideia pré-existente, mesmo que não tenham a intenção. Elas dizem coisas do tipo "ela era esbelta", "uma mulher mignon", "ela estava vestindo isso"... E eu penso: ai, meu Deus, o que é que há de errado com essa gente?! E os adjetivos que usam, costumam ser muito específicos do gênero: "havia uma sensibilidade na música", ou "surpreendentemente possante". Sabe... Por que "surpreendente"?
Quanto à Osesp, eu expliquei para os músicos o seguinte: nesta primeira turnê, as pessoas vão ter que achar alguns problemas. Porque você não pode simplesmente emergir do Brasil, carregado com o tipo de estereótipo que as pessoas cultivam, e simplesmente ser fantástico. É preciso dar um pouco de tempo, e não tomar a questão pessoalmente. Nós vamos simplesmente seguir o nosso caminho.
Para terminar, que conselho daria a uma jovem aspirante a maestra, alguém que queira trilhar hoje o mesmo caminho que você?
Ah, sabe, eu acho que é para qualquer pessoa, mulher ou homem: é uma carreira muito difícil. Porque os que vão conseguir são uma porcentagem tão mínima! É como estar nos Jogos Olímpicos: você pode ser um excelente atleta, mas tem que ser realmente o máximo para chegar até o topo. Mas eu não acho que seja isso o que importa.
A carreira de regente é uma coisa muito gratificante, não importa em que nível você chegue. Pois não só você pode ir atrás de algo por que é apaixonado, como também tem a oportunidade de transformar vidas através da música – e eu acho essa uma meta muito digna de se perseguir na vida. Mas você não precisa estar com a Filarmônica de Berlim. Você pode ser um grande regente de uma orquestra comunal, e fazer uma grande diferença no mundo.
Então, eu acho que é uma grande carreira!
Entrevista: Augusto Valente
Revisão: Marcio Pessôa