Brasil marca presença no Festival de Rheingau
19 de agosto de 2012Até que ponto a reação do público é um barômetro confiável para o mérito artístico de um concerto? Que não se trata de um critério imparcial está acima de qualquer dúvida. Pois ninguém compra ingressos, percorre até centenas de quilômetros e dedica uma noite de seu tempo de lazer a uma apresentação sem vir armado de uma expectativa positiva – construída a partir do que afirma a imprensa especializada, das obras conhecidas ou dos nomes no programa.
No caso do concerto da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp) deste sábado (18/08), no Festival de Música de Rheingau, os nomes certamente pesaram no julgamento do público. A apresentação na cidade alemã de Wiesbaden foi regida pela norte-americana Marin Alsop, e o pianista brasileiro Nelson Freire figurou como solista.
Mas, sendo realista: trata-se da Europa continental e não do Brasil ou da América do Sul – onde Freire e a orquestra são grandezas indiscutíveis –, ou até mesmo dos Estados Unidos ou da Inglaterra – onde, há alguns anos, Alsop ocupa o primeiro escalão entre os maestros.
O programa incluía um tiro certo – a Quarta sinfonia, de Piotr Tchaikovsky. Mas também duas peças inéditas para grande parte da plateia, dos brasileiros Camargo Guarnieri e Heitor Villa-Lobos.
Então, no caso específico deste concerto, quanto do júbilo dos espectadores é pré-determinado pelo prestígio de quem está no palco? Quanto se deve puramente à alta qualidade artística, a um possível poder absoluto da música?
Patriarca gentil
Para inaugurar sua temporada de 1971, a própria Osesp encomendou ao paulista Mozart Camargo Guarnieri (1907-1993) uma Abertura festiva. A breve peça cumpre com bravura a função de exibir a excelência da orquestra, com destaque para os sopros e a variada seção de percussão.
Polifonia rica e orquestração sólida, de um compositor que – como acentua Arthur Nestrovski, diretor artístico da Osesp – mereceria uma presença muito maior nas salas de concerto internacionais. E uma oportunidade para brilhar em cena – que Alsop, regente titular da orquestra, e os instrumentistas de São Paulo aproveitaram plenamente, com recepção calorosa pelo público do Rheingau Musik Festival..
A entrada triunfal de Freire confirmou que a fama do mineiro – gentil patriarca do piano erudito no Brasil – era o motivo da presença de boa parte dos amantes da música reunidos em Wiesbaden, no sudoeste alemão.
O pianista de 67 anos brilha pela discrição. Nada em sua atitude ostenta o currículo de mais de cinco décadas a serviço da música, que inclui numerosas distinções, colaborações com as mais importantes orquestras e regentes e parceiros como a argentina Martha Argerich.
Enquanto a Osesp e Alsop eram estreantes na bela região vinícola alemã, Freire já se apresentara em 2003 e 2007 no Festival de Rheingau, que comemora sua 25ª edição.
Carnaval das crianças
Mômoprecóce – fantasia para piano e orquestra, de Villa-Lobos, foi uma sugestão de programa relativamente ousada, que partiu do próprio Freire. Baseada na suíte para piano solo Carnaval das crianças, de 1919, e concluída dez anos mais tarde, a peça revela o grande compositor a meio caminho entre o Impressionismo francês e a irreverência stravinskyana.
Em entrevista à DW Brasil, a regente Marin Alsop descreveu sua concepção da obra e a colaboração com Freire:
"É uma peça sobre inocência, infância, celebração, fantasia. Um maravilhoso instantâneo de certa parte da vida brasileira, que é vivenciar o Carnaval como criança. Acho que Mômoprecóce combina com Freire, porque ele é um intérprete muito autêntico – inocente, de certo modo. Sua abordagem é sincera, sem muita pretensão. É uma 'ingenuidade informada'. Acho que é uma linda combinação para a peça."
Com grande sensibilidade, Freire e Alsop exploraram as relações cambiantes entre o conjunto e o piano, por vezes solista virtuose, por outras mais um integrante num tecido orquestral exuberante. A reação do público reunido na Sala Friedrich von Thiersch da Kurhaus de Wiesbaden premiou a ousadia da escolha e a concentração dos intérpretes. Os aplausos só cederam quando Freire retornou para um bis.
Em consonância com a persona artística sutil e low key do músico brasileiro, a escolha recai sobre A lenda do caboclo, também de Villa-Lobos. Nenhum exibicionismo, nenhum esforço para arrebatar com fogos de artifício: a evocativa peça cativa pela delicadeza do toque e do fraseado de Freire – até o último acorde, que arranca um "Ah!" deliciado da plateia.
Tchaikovsky revisitado
Nos últimos três anos, a Osesp persegue, entre outros, um alvo tão ambicioso quanto bem definido: afirmar-se no cenário internacional como a melhor orquestra sul-americana da atualidade. Tal meta envolve uma série de estratégias astutas e pacientes, em que nada fica ao sabor do acaso. Elas vão desde atrair excelentes músicos para seus quadros, até a seleção meticulosa do repertório, passando por um equilíbrio inteligente entre ação local e global.
No caso de uma turnê internacional como esta – a Osesp acabava de vir do festival BBC Proms, de Londres, seguindo para se apresentar na sala Concertgebouw de Amsterdã –, a estratégia de repertório implica, é claro, estabelecer diferenciais, explorando o potencial "exótico" brasileiro.
Mas implica também refazer, tornar novo o já conhecido. Por um lado, para garantir bilheteria, pois o frequentador médio não sai de casa para assistir a um programa totalmente inédito. Por outro, para oferecer um critério que permita a público e crítica julgar o nível do conjunto, compará-lo com outras interpretações já conhecidas.
Assim o diretor executivo Marcelo Lopes justificou, em entrevista à DW, a inclusão, no programa da noite, daquela que é considerada a "Sinfonia do Destino" do romântico russo. E Alsop, sem dúvida, soube explorar essa chance de deixar marcado na memória do público do Festival de Rheingau o som da orquestra da qual é titular desde março de 2012.
2013 em Frankfurt
Desde os primeiros toques de trompas, essa Quarta sinfonia é eloquente, brilhante, por vezes até estridente, com amplos contrastes de dinâmica – do super pianíssimo ao fortíssimo esmagador.
Mas há também a pulsão rítmica irresistível nos pizzicati do terceiro movimento, boa definição das linhas do contraponto, solos nada menos que perfeitos. É um Tchaikovsky mais das cores primárias do que dos entretons – menos taciturno, mais extrovertido e "moderno" do que o usual. Inusitado e convincente.
Também desta vez, os brasileiros e sua "Maestra" se impuseram em Rheingau: longos minutos de aplausos, bravos, palmas rítmicas conquistam um bis. De novo os ouvidos europeus se encontram em mares nunca dantes navegados. Mas é certeiro o efeito do vigoroso Frevo, de Edu Lobo, em orquestração de Nelson Ayres. Mais aplausos, um bis não bastou: segue-se Batuque de Lorenzo Fernández (1897-1948) – dança obstinada e hipnótica, quase uma versão afro-brasileira do Bolero de Ravel.
Se depender dessa apresentação no festival alemão, a Osesp está agora um passo mais perto de sua grande meta. E muitos dos presentes – brasileiros ou não – vão esperar com ansiedade o retorno da orquestra ao país em 2013, para abrir a Feira do Livro de Frankfurt.
Autor: Augusto Valente
Revisão: Luisa Frey