Europeus confrontados com passado totalitário
4 de janeiro de 2006Até que ponto a historiografia pode ser ditada pelo Estado? Em fevereiro do ano passado, uma polêmica lei aprovada pelo Parlamento francês determinou que os currículos escolares reconheçam prioritariamente "o papel positivo da presença francesa no ultramar, sobretudo no Norte da África".
Após protestos veementes por parte de historiadores e líderes políticos das ex-colônias, os distúrbios entre jovens descendentes de imigrantes nas periferias urbanas francesas, em outubro e novembro, vieram a acirrar ainda mais a discussão sobre o passado colonialista. Até que, em meados de dezembro, 19 historiadores – entre os quais Jean Pierre Vernant e Pierre Vidal-Naquet – lançaram o manifesto "Liberté pour l'histoire" (Liberdade para a história), onde condenam diversas leis que, no seu parecer, "prescrevem métodos e impõem limites aos historiadores".
Negar o passado é crime?
Na visão dos assinantes do manifesto, história não é religião, nem moral, nem objeto jurídico, além de não se submeter à atualidade e não se reduzir à memória. Em defesa da autonomia histórica, eles exigem não apenas a revogação da lei sobre a propagação dos efeitos positivos do colonialismo, mas também as leis que enquadram como crime a negação da Shoah e do extermínio contra os armênios, bem como a que reconhece a escravatura como crime contra a humanidade.
Por um infeliz acaso, o apelo dos historiadores franceses coincidentemente foi lançado na mesma semana em que o presidente iraniano, Mahmud Ahmadinedjad, fez declarações estarrecedoras, qualificando o Holocausto como "mito" e negando a legitimidade do Estado de Israel. Será que criminalizar a propagação de inverdades históricas é, de fato, um desserviço à historiografia?
Da impossibilidade de uma historiografia atemporal
A opinião pública da Alemanha, um país escolado no confronto com um passado totalitário, criticou como ingênua a tentativa dos franceses em dissociar a história de "modelos ideológicos contemporâneos" e negar que ela "introduza a sensibilidade de hoje nos acontecimentos de outrora".
Afinal, sem a constante reciclagem da opinião pública e sem uma cultura de debates sobre a atualidade, como a sociedade poderia reajustar suas lentes e passar a enxergar o passado com outros olhos?
Mais do que colocar em questão a autonomia da história como disciplina "científica", a polêmica em torno do manifesto francês revela uma inquieta busca de como lidar com o passado totalitário na Europa.
O novo revisionismo
Na França, isso se reflete, por exemplo, na quebra de tabus, como a imagem ainda relativamente intocada de Napoleão Bonaparte. O lançamento do polêmico livro Le crime de Napoleon, de Claude Ribbe, no início de dezembro passado, por exemplo, conferiu maior discrição às comemorações do bicentenário da Batalha de Austerlitz.
Depois que a escravatura foi enquadrada como crime contra a humanidade na legislação francesa, em 2001, não deixa de ser uma quebra de tabu por parte dos conservadores tentar restaurar nas escolas a glória do passado colonialista.
Em sociedades que tiveram que questionar a duras penas a auto-imagem das gerações anteriores e finalmente conseguiram estabelecer a "contra-história" como norma historiográfica, o revisionismo acaba partindo de conservadores interessados em restaurar a imagem da identidade nacional às custas da veracidade histórica. Na Alemanha, este é o caso do revisionismo de extrema direita, enquadrado como crime por negar o Holocausto, entre outros fatos históricos.
O que deve entrar para a história?
No entanto, ao exigir que se descriminalize a negação da Shoah e do extermínio dos armênios, por exemplo, os historiadores franceses lançaram uma outra questão, bem mais delicada. Por um lado, a prescrição estatal daquilo que deve "entrar para a história" é incompatível com qualquer democracia; por outro, uma democracia que não defenda a integridade das vítimas da história também não estaria cumprindo sua função.
Até que ponto é legítimo impor como obrigação civil a confirmação de verdades históricas?
Se a afirmação de verdades históricas se reduzir a mera "political correctness" ou obediência à lei e não corresponder a uma reflexão coletiva mais aprofundada, a prescrição do que deve ser considerado histórico ou não pode até ser perigosa, pois escamoteia o que certos setores da sociedade realmente pensam. No entanto, este é raramente o caso, em se tratando do desafio de se confrontar com o próprio passado (ou presente) criminoso e segregacionista.
Na Alemanha, por exemplo, a interiorização definitiva de que negar o Holocausto é crime sucedeu um amplo debate público nos anos 80, lançado pelo filósofo Jürgen Habermas e denominado "disputa dos historiadores" (Historikerstreit). Na França, a violenta manifestação de insatisfação dos descendentes de imigrantes (dos quais mais da metade provém de ex-colônias) obrigou a sociedade a encarar que o segregacionismo colonial talvez ainda perdure nas periferias urbanas francesas.
Estado como motor mnemônico
Por outro lado, o intervencionismo do Estado na reflexão histórica pode contribuir para a "elaboração do passado" (Vergangenheitsbewältigung, um conceito-chave alemão no processo de reconstituição da memória coletiva). Ao longo do ano passado, o governo alemão formou duas comissões de historiadores, a fim de corrigir imprecisões e possíveis inverdades sobre o papel no Estado nos regimes ditatoriais.
A chamada Comissão de Historiadores para Investigação do Papel do Ministério do Exterior na Época do Nacional-Socialismo, constituída em setembro passado, tem a responsabilidade de esclarecer a conivência da diplomacia com o regime nazista, sua forma de lidar com o passado e a permanência no Ministério, após 1945, de pessoas envolvidas com os crimes nazistas.
A Comissão de Especialistas para Concepção de uma Associação de Investigação sobre a Ditadura do SED [partido central da antiga Alemanha comunista], constituída no início do ano passado, está inventariando o acervo e os arquivos de 39 instituições da antiga Alemanha Oriental, a fim de esboçar uma "paisagem da memória".
Não esquecer o que se deleta
Ao promover a investigação histórica e o desarquivamento de capítulos trágicos ou menos heróicos da própria história, o Estado também pode estar ditando uma perspectiva unilateral do passado. No caso do confronto com o regime socialista alemão, o Estado do país reunificado tende a priorizar o esclarecimento dos atos totalitários, à medida que isso não represente um risco político muito grande. (Até agora não se decidiu, por exemplo, sob responsabilidade de qual órgão ficará o arquivo do serviço secreto socialista...)
No entanto, ao promover a investigação de seu passado como ditadura socialista, a Alemanha não deixa de "queimar arquivos". Ao priorizar o repúdio aos crimes de um regime totalitário, o Estado tende a varrer muita coisa da história cultural da Alemanha Oriental para debaixo do tapete. Uma prova disso é a iminente demolição do Palácio da República, o edifício no centro da antiga Berlim Oriental que deverá ser substituído pela reconstrução do palácio barroco destruído na Segunda Guerra. Preservação da memória coletiva?
O manifesto dos historiadores franceses e sua repercussão na Alemanha mostram que história não se prescreve, mas sempre estará sujeita a releituras e passível de ser instrumentalizada por quaisquer grupos políticos. O importante é que jamais se reprima o debate.