"Derrotar Bolsonaro nas urnas não acabará com bolsonarismo"
30 de junho de 2022A leitura de Limites da democracia: de junho de 2013 ao governo Bolsonaro, novo livro do filósofo e sociólogo Marcos Nobre, provoca uma profunda angústia sobre o atual momento vivido pelo país.
"A ilusão maior é achar que dá para voltar ao que era antes de 2013. Não dá, é impossível, é inviável, mudou tudo, mudaram as condições do país, tudo, teve um processo de autodestruição do país muito pesado", diz Nobre, em entrevista à DW Brasil.
Professor na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e atual presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), Nobre não acredita no senso comum de que a semente do bolsonarismo estava plantada nas manifestações de 2013 e afirma que, mesmo que Bolsonaro não seja reeleito, o movimento vai continuar mobilizado.
"Vai ser uma oposição muito desleal, desleal no sentido de que é antidemocrática. Oposição leal é aquela que mantém a democracia", considera.
Para ele, o Brasil está agora diante de "uma regressão autoritária ou um salto adiante", mas pode não acontecer nenhuma dessas duas coisas nas eleições de outubro.
"Pode de fato o [presidente Jair] Bolsonaro perder a eleição, e o Lula [Luiz Inácio Lula da Silva, ex-presidente e atual pré-candidato de oposição] ganhar e dizer 'ah, vou voltar para a década de 2000'. Aí vai dar errado, no sentido de que em 2026 o Bolsonaro vai estar lá esperando para colher os frutos", afirma.
DW Brasil: O seu novo livro traz um cenário do que aconteceu no Brasil de 2013 para cá. A minha pergunta é: o senhor escreveu a introdução de uma história futura ou o necrológio de um país? Sua visão é mais otimista ou mais pessimista?
Marcos Nobre: As duas coisas ao mesmo tempo. A gente pode decidir se inviabilizar como país ou decidir dar um salto adiante. Porque a ilusão maior é achar que dá para voltar ao que era antes de 2013. Não dá, é impossível, é inviável, mudou tudo, mudaram as condições do país, tudo, teve um processo de autodestruição do país muito pesado.
Temos duas possibilidades: ou uma regressão autoritária ou um salto adiante. Pode não acontecer nenhuma dessas duas coisas, pode de fato o Bolsonaro perder a eleição e o Lula ganhar a eleição e dizer "ah, vou voltar para a década de 2000". Aí vai dar errado, no sentido de que em 2026 o Bolsonaro vai estar lá esperando para colher os frutos. Que frutos? Aquilo que ele plantou: destruição. É muito difícil você recuperar, em quatro anos, um país destruído durante quatro anos. Bolsonaro estará lá para colher o que plantou.
[Por isso] tem de ser um salto adiante. Tem de haver claramente o enfrentamento de problemas que o PT não enfrentou quando estava no poder, como uma redistribuição [de renda] a sério, não o ganha-ganha que depende do crescimento, mas a redistribuição que você tira de um lugar e põe no outro. Outro salto é do ponto de vista da cultura política. Não dá para colocar todo mundo para dentro do governo. Ou você faz um governo mais enxuto ou você não vai conseguir fazer as mudanças para que o Bolsonaro não volte.
Isso, é claro, se não tiver golpe antes. E não necessariamente pode ser o Bolsonaro, pode ser um filho dele, porque é um clã. A situação é esta mesma: ou é um necrológio ou um passo adiante, são essas duas possibilidades. E não é só uma eleição. Derrotar eleitoralmente o Bolsonaro não significa derrotar o bolsonarismo, que vai continuar muito organizado, ativo, mobilizado. Vai ser uma oposição muito desleal, desleal no sentido de que é antidemocrática. Oposição leal é aquela que mantém a democracia.
Nesse sentido, logo no início de sua obra, o senhor recorda uma frase do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso para colocar PT e PSDB como dois partidos "capazes de tirar o Brasil” de uma situação de atraso, de clientelismo. Precisou um Bolsonaro para demonstrar que o tucano Fernando Henrique e o petista Lula, na verdade, foram muito mais parecidos do que o senso comum acreditava?
O neoliberalismo provocou um engarrafamento do centro político, ele obrigou todas as forças, que quisessem ter força eleitoral, a se aglutinarem em um centro muito apertado. Foi o que aconteceu no Brasil. O Plano Real colocou a ponta seca do compasso no centro e fez um círculo da atuação política possível, um círculo bem estreito. Quando isso estoura, em 2008, fica claro que a polarização que existia [entre PT e PSDB] era estreita do ponto de vista das posições políticas na base da sociedade. Ficou parecendo que era tudo igual e inclusive o discurso antissistema é muito baseado nisso, "de que era tudo muito igual, de que entre PT e PSDB não tinha diferença".
Nesse sentido, como o senhor analisa o simbolismo de uma chapa formada por Lula e pelo ex-tucano Geraldo Alckmin?
Lá [nos anos 1990 e 2000] as diferenças pareciam grandes, porque o campo do politicamente possível era muito estreito. Hoje parece que é tudo igual porque justamente se ampliou esse campo. O sentido dessa chapa Lula-Alckmin não é o sentido de dizer "olha, era tudo igual, era só jogo de cena". Não. É mais profundo. É o sentido de uma frente ampla contra o autoritarismo. Isso é o decisivo dessa chapa. Diante da ameaça autoritária, é necessário construir uma frente ampla, não só para ganhar a eleição, para o futuro. Para fazer um acordo e refundar o sistema político em novas bases de funcionamento no Brasil, para que seja possível enfrentar problemas que não foram enfrentados no período do acordo do [Plano] Real.
Já era possível vislumbrar a semente da extrema direita, a semente do bolsonarismo, nas manifestações de junho de 2013?
Eu passo o livro inteiro para demonstrar que não. Essa é a tese interpretativa dominante no Brasil: que 2013 foi um movimento de direita. Isso não tem base em nenhum documento, em nenhuma observação, nenhuma pesquisa. Zero. Defender isso é defender uma tese ideológica.
Será que a associação não se torna fácil por conta do uso dos símbolos que depois se tornariam comuns ao bolsonarismo, como camisas da Seleção e cores da bandeira brasileira?
Era um movimento antissistema que, portanto, não tinha uma referência de cor [partidária]. Se a referência foi a camisa da Seleção, que não foi todo mundo, mas foi uma parte, só depois isso foi apropriado [pela extrema direita], porque a coalização que estava no poder, liderada pelo PT, entendeu esse movimento [de 2013] como uma ameaça, como um risco. E não como uma oportunidade. No momento em que [o PT] fez isso, entregou realmente para a direita os símbolos nacionais e, num segundo momento, já em 2018, para a extrema direita.
Por que essa explicação [que liga 2013 à gênese do bolsonarismo] é fácil? Porque é uma explicação preguiçosa, que não quer olhar para o que aconteceu. O problema todo é que, para a gente sair do buraco onde a gente está, é preciso entender o que aconteceu. Preguiça intelectual não vai nos ajudar a sair do buraco, muito menos um salvacionismo qualquer de dizer que tem uma pessoa que vai resolver isso tudo.
Limites da democracia é o título do seu livro. O Brasil corre o risco de ultrapassar esses limites em 2022?
O risco está posto diante de nós. O país está diante da possibilidade de regredir ao autoritarismo ou de dar um salto tanto no combate às desigualdades como no funcionamento do sistema político. É esta a situação: ou um salto adiante ou uma regressão do pior tipo.