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"'Torto Arado' reflete passado escravagista mal resolvido"

15 de março de 2021

Em entrevista, o escritor Itamar Vieira Junior fala sobre o sucesso de seu romance, vencedor do Prêmio Jabuti, e a dura realidade de trabalhadores no sertão baiano, pano de fundo do livro.

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Itamar Vieira Junior
"Mesmo com toda a adversidade, é preciso que a gente tenha essa esperança engajada", diz Itamar Vieira JuniorFoto: Editora Todavia/divulgação

Em 2018, o geógrafo Itamar Vieira Junior decidiu inscrever seu livro Torto Arado no prêmio LeYa, de Portugal. Venceu, e o livro foi publicado primeiro lá. No ano seguinte, a editora Todavia adquiriu os direitos e publicou o romance no Brasil. O sucesso, contudo, viria apenas no fim de 2020.

Torto Arado venceu os dois principais prêmios literários brasileiros, o Jabuti e o Oceanos, no ano passado. E acabou conquistando as redes sociais. De acordo com informações fornecidas pela editora Todavia à DW Brasil, até agora já foram vendidos 100 mil exemplares. E isso transformou o até então desconhecido Vieira Junior em uma celebridade do mundo literário.

"É difícil para mim, como autor, entender o que se passa com o livro", comenta o autor, que antes de Torto Arado tinha publicado dois livros de contos. "Acho que prêmios contribuíram bastante para dar um destaque, mas acho também que os leitores têm se conectado com a história."

Os direitos de Torto Arado já foram vendidos para Itália, México, Peru, Eslováquia, Bulgária, Croácia, França, Alemanha e Estados Unidos. E uma produtora deve transformar a obra em filme.

Nascido em Salvador, Vieira Junior tem 41 anos, e há 15 é analista agrário do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), autarquia federal. Graduado em Geografia pela Universidade Federal da Bahia, obteve os títulos de mestre e doutor pela mesma instituição — seu doutorado foi em estudos étnicos e africanos.

O sertão baiano, as relações de trabalho semiescravagistas, a discriminação racial e a questão da terra — temas inerentes à vida, aos estudos e ao trabalho de Vieira Junior — são pano de fundo para a trama de Torto Arado.

"As relações de servidão ainda são muito presentes no campo brasileiro [...] Isso remonta ao nosso passado escravagista mal resolvido, que nos legou um racismo estrutural e relações de trabalho muito precárias, principalmente onde o Estado está ausente, a Justiça está ausente — e aí eu falo do campo brasileiro", diz Vieira em entrevista à DW Brasil.

"O fato de meu trabalho ser diretamente ligado às pessoas que estão engajadas nesta luta, pela redução da desigualdade e tantas outras questões ligadas à terra, à luta pela terra, me ajudou a ter um olhar diferenciado sobre o assunto", afirma.

DW Brasil: Torto Arado estava pronto em 2018, foi lançado no Brasil em 2019, mas acabou se tornando um sucesso entre os leitores apenas recentemente. Em sua avaliação, por que demorou tanto?

Itamar Vieira Junior: Acho que o livro fez um caminho natural de um autor não conhecido. […] Torto Arado fez um percurso peculiar, vencendo o prêmio LeYa e sendo publicado em Portugal. Isso, de alguma forma, despertou a atenção dos leitores, mas essa atenção foi construída aos poucos. Depois da publicação no Brasil, percebi que o livro foi aparecendo em clubes de leituras e [sua popularidade] crescendo ao longo do tempo. Esse crescimento se tornou bastante expressivo depois dos prêmios Jabuti e Oceanos.

Capa de "Torto Arado", den Itamar Vieira Junior
Mais de 100 mil exemplares de "Torto Arado" já foram vendidos no BrasilFoto: Editora Todavia/divulgação

É difícil para mim, como autor, entender o que se passa com o livro. Seria mais fácil para alguém do mercado editorial explicar o que torna um livro sucesso de venda. Acho que prêmios contribuíram bastante para dar um destaque, mas acho também que os leitores têm se conectado com a história. O que é muito peculiar, porque o Brasil hoje é um país predominantemente urbano, e a história [do livro] se passa no meio rural. Ainda assim, essa memória do campo parece fazer parte das memórias familiares, pelo menos é o que eu tenho lido e escutado dos leitores. […] No fim, é uma história bastante nossa, muito brasileira.

O livro apresenta famílias que vivem em condições de trabalho que, de certa forma, perpetuam um regime semiescravagista nos confins rurais brasileiros. Como foi o mergulho nessa realidade? Durante sua escrita, quanto havia de preocupação em fazer ressoar este universo como um problema social, muito além da literatura?

As relações de servidão ainda são muito presentes no campo brasileiro, o resgate de trabalhadores em condição de escravidão ainda é uma constante em nosso cotidiano. Isso remonta ao nosso passado escravagista mal resolvido, que nos legou um racismo estrutural e relações de trabalho muito precárias, principalmente onde o Estado está ausente, a Justiça está ausente — e aí eu falo do campo brasileiro. O meu contato com essa realidade veio da minha atividade como servidor público, atuando com trabalhadores rurais há quase 15 anos. [Nesse período] eu pude encontrar trabalhadores em situação precária e tudo isso me marcou profundamente.

No fundo, no fundo, eu queria contar a história das personagens [protagonistas do livro], mas essa história não poderia estar desconectada de um contexto do mundo em que vivemos. Se elas estavam ali, no sertão da Bahia, se viviam numa fazenda onde seu trabalho era explorado, inevitavelmente essa história iria ser contada como tal. É difícil escrever um romance desconectado do nosso mundo. Então essas personagens estão conectadas ao mundo que nos cerca, e esse mundo ainda é um mundo de contrastes, onde pessoas têm seu trabalho explorado.

Quando faço ficção, tudo o que me atravessa na vida de alguma forma se reflete na minha escrita. […] O fato de trabalhar como servidor, entre trabalhadores rurais, para mim de alguma forma é privilégio, porque permitiu que eu conhecesse meu país, meu Brasil, suas relações sociais, sua história mal resolvida. De uma maneira mais profunda. […] Tudo o que eu aprendi na vida se reflete naquilo que eu escrevo. Somos o que escrevemos.

Torto Arado é também sobre a relação do homem com a terra. Por trabalhar no Incra, essa questão acaba lhe sendo mais pungente? Acredita que o acesso à terra no Brasil piorou nos últimos anos?

A questão da terra é uma questão universal que atravessa todos os povos, de muitas origens, e a terra aqui é algo mais, que pode ser também metafórico. Afinal de contas, o chão de nossa casa, o solo que pisamos, é a terra onde estamos. O acesso à terra é um dos direitos mais elementares do ser humano, […] algo com que todos precisam lidar em algum momento. O fato de meu trabalho ser diretamente ligado às pessoas que estão engajadas nesta luta, pela redução da desigualdade e tantas outras questões ligadas à terra, à luta pela terra, me ajudou a ter um olhar diferenciado sobre o assunto.

Acredito, sim, que o acesso à terra piorou no Brasil nos últimos anos. Tivemos dois planos de reforma agrária, um na década de 80, outro no começo dos anos 2000. Esses planos foram postos em prática mas abandonados depois por alguns governantes. A violência no campo é uma constante, a todo momento. E está relacionada à destruição de biomas, como a Amazônia e o Pantanal, pelos grandes latifundiários que produzem commodities. A questão da terra, do direito à terra, passa por muitas outras questões, como a ambiental e a da redução das desigualdades. Questões que nos afetam enquanto país e se tornam propulsoras das nossas imensas desigualdades.

Você foi o primeiro aluno beneficiado com a bolsa Milton Santos, para alunos negros e de baixa renda. Isso lhe confere mais responsabilidade como voz, com seu trabalho e literatura, de tantos negros pobres brasileiros?

Ser o primeiro aluno a receber a bolsa foi para mim de extrema importância e é algo que levo comigo com muito orgulho. Estudei na universidade em um momento em que a assistência ao estudante pobre era muito precária, antes de muitas políticas afirmativas. […] Para poder me manter como estudante, trabalhei como empacotador de supermercado, balconista de farmácia. Poder contar com essa bolsa para concluir meus estudos foi de extrema importância para que eu me dedicasse à pesquisa, à iniciação científica. E isso culminou, mais tarde, com meu mestrado, meu doutorado. […] Foi um imenso privilégio.

Acho que minha voz é apenas mais uma a diversificar, a conferir à nossa literatura uma diversidade que espelhe a diversidade de sua população, do povo. Assim como eu, há muitos escritores negros, escritores indígenas, escritores negros de diversas origens, matizes. Não somos um segmento homogêneo. Há muita diversidade entre nós, e isso se soma à diversidade da sociedade brasileira. 

Gosto da ideia de representatividade, quando os leitores negros e pobres buscam essa representatividade, não só nas narrativas que leem mas também nos autores. Isso é importante. Durante um tempo eu também busquei isso. Mas não me considero uma voz. Minha voz se soma a inúmeras vozes que estão fazendo arte, literatura. E cada vez mais nossa literatura tem espelhado essa diversidade.

Quando você foi entrevistado pelo programa Roda Viva [da TV Cultura], você disse que tem "uma esperança engajada no Brasil”. De que maneira essa esperança se manifesta?

A ideia de esperança engajada é uma esperança que não se deixa abater pelas adversidades que estão postas para todos nós. Vivemos em um momento muito difícil, muito perturbador da história humana e, em particular, do Brasil, com um governo de extrema direita. Mas, mesmo com toda a adversidade, é preciso que a gente tenha essa esperança engajada, uma esperança que não é passiva, que se reflete apenas nos propósitos, na utopia, nos sonhos. É uma esperança ativa, que a gente precisa fazer esse mundo mudar, e mudar de que jeito? Lutando para que as coisas mudem, protestando, debatendo publicamente, sendo a mudança que queremos que o mundo seja.