Terremoto: por que ajuda demorou a chegar ao norte da Síria?
20 de fevereiro de 2023Quando o devastador terremoto começou, em 6 de fevereiro, na cidade de Jindires, perto de Aleppo, no norte da Síria, Ramadan Hilal e sua família fugiram em pânico de casa. "Todos estavam descalços. Estávamos correndo por nossas vidas, feridos e sem carregar nada", recorda.
Quatorze dias depois do tremor, a situação de Hilal é praticamente a mesma. E Jindires é um dos locais mais atingidos em toda a região. Hilal, que sete anos atrás deixou sua cidade natal, Aleppo, por causa da guerra civil, vive agora com a família numa tenda improvisada, ao lado dos escombros da própria residência.
Ele tentou salvar o que pôde de dentro da casa destruída, mesmo sob risco de desabamento: "Até mesmo para construir a tenda onde vivemos, tive que pegar estacas emprestadas e comprar tecido para a cobertura. Não recebemos nenhuma ajuda até hoje."
Comboios com equipes de resgate só chegaram à região quatro dias após o abalo sísmico, embora tendo partido rumo à área quatro dias antes, pois o auxílio já era necessário devido à guerra. Só em meados de fevereiro a ajuda humanitária veio em número significativo, trazendo barracas, medicamentos, alimentos e outros itens.
Habitantes locais, como Hilal, tentam sobreviver às temperaturas invernais. A ajuda, além de ter chegado tardiamente, é ínfima. Nos últimos dias houve relatos de socorristas tentando libertar soterrados com as mãos nuas. No fim, porém, as vozes silenciaram sob os escombros: para as vítimas, a juda chegara tarde demais.
Por que demorou tanto?
Na região vivem cerca de 4 milhões, principalmente refugiados da guerra civil, vindos de outras partes do país. A área é controlada por diversos grupos que lutam contra o governo sírio.
Mais de dez anos de guerra, governos provisórios e ataques à infraestrutura por parte do governo sírio e da aliada Rússia atingiram instalações médicas e de socorro emergencial, que já se encontravam sob pressão ou nem existiam mais antes do terremoto, Independente dessa última catástrofe, os moradores já eram dependentes da ajuda internacional para sobreviver.
Obter ajuda nessa área, há muito controlada pela oposição, é uma questão política: o governo do ditador Bashar al-Assad defende que toda ajuda humanitária passe por Damasco.
Até o momento, o fato é que Assad tem usado os envios de ajuda internacional para fortalecer a si e a seus apoiadores, garantindo que seus adversários fiquem excluídos do auxílio nas áreas sob controle oposicionista.
Por isso, desde o início da guerra civil, a Organização das Nações Unidas (ONU) e ONGs humanitárias insistem que a ajuda deva ir diretamente para áreas as controladas por rebeldes através da fronteira turca, sem necessidade de permissão do regime de Assad. Foi assim que a maior parte da assistência chegou lá nos últimos anos.
Em meados de 2014, o Conselho de Segurança da ONU foi integrado nas decisões sobre a ajuda à Síria. Ele estipulou que suas agências de ajuda humanitária e seus parceiros poderiam utilizar quatro postos de fronteira – dois na Turquia, um na Jordânia e outro no Iraque – sem pedir permissão ao governo sírio.
No mesmo ano, porém, a situação mudou drasticamente, devido ao crescente apoio militar da Rússia a Assad. Mais tarde, a partir de fevereiro de 2022, a invasão da Ucrânia intensificou ainda mais as tensões dentro do Conselho de Segurança.
A ajuda internacional ao noroeste da Síria, pelas fronteiras, tornou-se uma moeda de troca política, com a Rússia usando seu assento permanente no Conselho de Segurança da ONU para apoiar o regime Assad e chantagear outros membros em troca de concessões. Desde 2020, devido a essas pressões, o Conselho só permite que a ajuda seja transportada por meio de um posto fronteiriço entre Turquia e Síria.
Quem é responsável?
Essa era a situação em que a área se encontrava em 6 de fevereiro de 2023, dia do terremoto. Uma semana depois, o regime de Assad concordou que mais dois postos fronteiriços turcos poderiam ser abertos durante três meses. Enquanto os partidários de Assad afirmam que a culpa é das sanções internacionais, críticos acusam o governo sírio de esperar tempo demais para tomar a decisão, de maneira cínica e por razões políticas.
Abrir a fronteira é "uma forma de o regime explorar a tragédia para seus próprios fins políticos", alertou Joseph Daher, especialista em Síria do Instituto Universitário Europeu, na Itália, ao jornal The Washington Post.
"Repetidamente, temos visto que o governo sírio está disposto e é capaz de usar crises para expandir seu controle", reforçou em comunicado Jesse Marks, da organização Refugiados Internacional.
Possível erro da ONU
Em parte, a culpa também pode ser atribuída à ONU. Aparentemente, em 8 de fevereiro o governo turco já concordara em abrir mais dois locais para transportar ajuda, mas a ONU decidiu esperar pela aprovação do governo sírio.
"Quando perguntei à ONU por que a ajuda não tinha chegado a tempo, a resposta foi 'burocracia'", relatou o chefe da organização Capacetes Brancos da Síria, Raed Saleh, à rede CNN na semana seguinte aos abalos: "Diante de um dos desastres mais mortais que atingiram o mundo nos últimos anos, a ONU está presa em sua própria burocracia."
"A ONU está num dilema", observa Ibrahim Olabi, advogado e fundador do Programa de Desenvolvimento Legal da Síria. Se ignorar as complexas questões políticas por trás do debate a respeito da travessia da fronteira e a legislatura do Conselho de Segurança, a ONU "corre o risco de comprometer as relações com Damasco, e possivelmente não poderá mais atuar no país".
"Não havia motivo para a ONU esperar uma semana e depois obter uma permissão inútil [para abrir a fronteira] e apresentar isso como um triunfo da diplomacia. Isso é mais ou menos como pedir à Rússia permissão para entregar ajuda à Ucrânia", argumentou Muhammad Idrees Ahmad num artigo para a revista americana especializada em política externa News Lines.
Outras organizações reagiram de forma semelhante. A Human Rights Watch, por exemplo, comentou que a lenta resposta humanitária aos terremotos no norte da Síria "deixa clara a insuficiência nos mecanismos de ajuda transfronteiriça guiados pelo Conselho de Segurança na Síria e indica a necessidade urgente de alternativas".
Beneficiários do desastre
Mas não foi apenas a relutância da ONU que impediu a chegada da ajuda. Alguns comboios que tentaram atravessar a fronteira a partir de áreas controladas pelo governo foram impedidos de seguir adiante por grupos de oposição.
A Human Rights Watch informou que organizações como a Hayat Tahrir al Sham, sucessora da Al Qaeda no país, fizeram os caminhões darem meia volta, por rechaçar qualquer oferta de um governo que os bombardeou e os fez passar fome durante anos. E é exatamente assim que grupos apoiados pela Turquia estão se comportando em outras partes do norte da Síria.
Há também relatos de que vários grupos armados independentes pegam suprimentos de ajuda humanitária que passam pelos postos de controle e os distribuem em suas próprias áreas, uma prática comum também antes dos terremotos.
Essa forma de proveito ilícito também é praticado pelo governo sírio, segundo certas fontes. Um voluntário da região descreveu à Human Rights Watch que observou um comboio de ajuda sírio ser impedido de prosseguir por autoridades locais, até que entregasse metade da carga.
Mais tarde circularam nas redes sociais vídeos de pacotes marcados com os logotipos da ONU e da organização de ajuda Crescente Vermelho Sírio, que foram vendidos em Damasco e em outras cidades sírias.