Passeio no tempo
7 de novembro de 2009É preciso muita imaginação para "descascar" as numerosas camadas históricas que cobrem a Friedrichstrasse de Berlim. Um bom livro de história também ajuda, pois a rua de 3,5 quilômetros de extensão foi palco de diversos eventos de âmbito mundial.
Durante a Segunda Guerra Mundial, as bombas que arrasaram a capital alemã atingiram a rua duramente. Mas, embora hajam abalado seu elã, nem explosões nem outros golpes foram capazes de destruí-lo completamente.
Pois a Friedrichstrasse parece ter a capacidade de sempre se levantar e seguir adiante. Um pouco como a própria Berlim. Cortando a metrópole no eixo norte-sul, ela resume melhor do que qualquer outra avenida a tumultuada história da capital.
Inspiração romana
Hoje em dia, ela começa um tanto modesta, na ponta sul. A praça Mehringplatz era conhecida como Rondell no início do século 18, quando Friedrichstadt, o distrito em torno da Friedrichstrasse, foi construído fora dos muros da cidade.
O Rondell era uma praça circular, inspirada na Piazza del Popolo, de Roma. A coluna em seu centro marcava o limite sudeste da capital. A área era tranquila, com pouco para perturbar seu idílio suburbano – além de um ou outro treino militar, nas áreas destinadas aos desfiles.
Dois séculos mais tarde, os bombardeios da Segunda Guerra Mundial reduziriam o extremo sul da Friedrichstrasse a um campo de lama, povoado apenas pelos esqueletos dos edifícios destruídos. Sessenta anos mais tarde, ainda se percebem traços desse golpe do destino.
Começando a caminhada em direção ao norte, os sinais não são os mais auspiciosos. Algumas lojas étnicas de alimentos, um internet café desolado e placas de "Aluga-se" nas vitrines das lojas vazias refletem as dificuldades econômicas que esta parte da cidade ainda enfrenta.
Checkpoint Charlie
Porém, dois quarteirões adiante, a cena se transforma dramaticamente: chegamos ao ponto onde o Muro de Berlim cortava a Friedrichstrasse. Em 27 de outubro de 1961, apenas dois meses depois de o Muro fragmentar a cidade em duas, tanques norte-americanos e soviéticos se depararam frente a frente neste local.
Ambos os lados traziam munição a bordo e tinham ordens para atirar em caso de agressão. Das 5h do dia 27 até às 11h da manhã seguinte, as duas visões do mundo tentaram se intimidar mutuamente. A solução do impasse foi pacífica, porém instável, e consolidou o lugar da Friedrichstrasse na história da Guerra Fria.
O local era o chamado Checkpoint Charlie, então posto de passagem entre Berlim Ocidental e Oriental. Hoje, do Muro só resta uma trilha de tijolos, incrustados no asfalto e na calçada, marcando o trajeto da antiga fronteira. O arame farpado desapareceu, mas as lembranças permanecem. Mantida por particulares, a Casa no Checkpoint Charlie é parada obrigatória para grande parte dos turistas.
"Rua dos 107 cinemas"
Adentrando a antiga Berlim Oriental, a artéria recomeça a recuperar algo do brilho da época quando foi centro de negócios e de diversão da capital. Nota-se que, após a reunificação, as verbas para projetos de restauração jorraram, apagando as marcas do descaso do governo comunista.
No início do século 20, a Friedrichstrasse fora um mercado fervilhante, sobretudo para ouro e pedras preciosas. Abundavam os restaurantes da moda, hotéis, salas de negócios e bancos. Além de "rua dos 107 cinemas", a Friedrichstrasse era próspero local de trabalho para inúmeras prostitutas.
Os impetuosos anos após a reunificação trouxeram a empresários e investidores a esperança de um retorno dessa antiga vitalidade econômica. Arquitetos davam asas à imaginação, à medida que novos prédios cintilantes galgavam os céus e corretores aguardavam confiantes o avanço dos inquilinos. Porém as esperadas multidões de interessados não deram o ar de sua graça.
Luxo mantido a custo
Durante a década de 1990, construíram-se mais de 330 mil metros quadrados na Friedrichstrasse. Contudo boa parte permanece desocupada e em certos pontos o preço do metro quadrado caiu pela metade. O que não impediu luxuosas butiques e lojas de departamentos – Louis Vitton, Gucci, Galeries Lafayette, Bang & Olufsen, para mencionar apenas algumas– de se estabelecer na área.
Turistas, dondocas e profissionais de terno e gravata se acotovelam nas horas de pico, nesta rua surpreendentemente estreita para uma artéria tão importante. À medida que a economia do país se recupera, os templos do consumo voltam a ficar lotados, embora alguns se mantenham a duras penas, sem o reforço dos turistas novos-ricos procedentes da Rússia.
Palácio das Lágrimas
Seguindo sempre para o norte, a Friedrichstrasse cruza a grande Avenida Unter den Linden, para em seguida chegar à estação ferroviária que leva seu nome. Construída em 1882, ela se tornou a mais importante da capital durante a Guerra Fria, símbolo de uma nação e de famílias partidas por um abismo ideológico.
A estação Friedrichstrasse era a única frequentada tanto por viajantes do Leste como do oeste, na qualidade de único ponto de conexão para trens interestaduais, suburbanos e metrôs.
Embora localizada na parte oriental de Berlim, ela também podia ser utilizada por passageiros do oeste. Os que dispunham dos papéis necessários podiam entrar na República Democrática Alemã por aqui, passando por uma sala de controle alfandegário. Palco de tantas despedidas entre familiares e amigos, ela ficou conhecida como "Palácio das Lágrimas" (Tränenpalast).
Após a reunificação, a sala passou a abrigar eventos culturais importantes. Apesar disso, confirmando o ímpeto de transformação berlinense, o "Palácio" será em breve demolido para dar lugar a um complexo de escritórios. Ao lado da estação, encontra-se a casa de espetáculos Admiralspalast, reinaugurada em agosto.
Como a Fênix
Há cerca de um século, a parte mais ao norte da Friedrichstrasse, logo acima do Rio Spree, era uma importante zona de bares e clubes. Praticamente um a cada dois edifícios dispunha de algum tipo de local de diversão, incluídos numerosos bordéis.
Desde o século 19, a área atraía também os amantes do teatro, devido ao grande número de casas de espetáculos. A gama de ofertas ia do repertório moderno e clássico – no Berliner Ensemble, fundado por Bertolt Brecht na década de 1950 – passando pelo cabaret político do Distel Theater, até a programação despretensiosa do Friedrichspalast, centrada no entretenimento e figurinos luxuosos.
A Friedrichstrasse segue por mais alguns quarteirões, entre cafés, bares e andaimes – testemunhas do incansável processo de recuperação desta célebre rua. Ela desemboca no Portão de Oranienburg, passagem para um outro reduto de vida noturna, criado após a queda do Muro.
Houve quem denominasse "o Champs-Elysées de Berlim". A comparação parece imprecisa, mas não para desdouro da avenida alemã. Pois Friedrichstrasse compensa a grandeza do bulevar parisiense com sua história, sua fascinante variedade e a ressurreição das cinzas da guerra e da negligência comunista – como uma fênix.