MPB
5 de outubro de 2007Os alemães que se interessam pela música brasileira e de outros países considerados periféricos, como Cabo Verde, Argentina, Grécia e Cuba, têm na Tropical Music uma referência inquestionável. Fundada por Claus Schreiner, a gravadora sempre apostou na música de qualidade, gerada em países geralmente afastados dos holofotes da chamada grande mídia.
E o mais recente lançamento do selo sediado em Marburg volta a ter a MPB como tema: em três CDs caprichosamente embalados em digipack, Samba do Caju conta a história de uma fictícia família de músicos brasileiros da cidade do Rio de Janeiro, de 1840 até os dias de hoje.
Os mais desconfiados podem achar pretensioso tentar contar, em exatos 194 minutos, sobre o surgimento de gêneros musicais fascinantes como o choro, o samba, o baião nordestino, a bossa nova e seus derivados. Mas a verdade é que Samba do Caju dá conta do recado. A simpatia natural, despertada por iniciativas deste tipo, é plenamente justificada pela riqueza de informações reunidas, de forma muito objetiva, pelo autor do projeto, o próprio Claus Schreiner.
Dádiva da África e da Europa
Samba do Caju traz a história de um certo Chico da Costa, um violonista pós-bossa nova, descendente de escravos, que narra em primeira pessoa a saga de seus parentes, todos eles envolvidos de corpo e alma com a música. Ela abarca desde os tempos de escravidão na Bahia de Todos os Santos, até a mudança para o Rio de Janeiro.
Interpretada pelo cantor português Telmo Pires, que cresceu na Alemanha e reside em Berlim, a história corria o risco de desafinar no quesito "apresentação". Não seria mais lógico convidar um brasileiro para dar maior credibilidade ao personagem? Quem escuta o desempenho do fadista Telmo nas mais de três horas de seu relato conclui que não. O artista português defende com muita segurança o papel de carioca, com sua voz límpida e sua pronúncia perfeita em alemão, sem precisar apelar para estereótipos do linguajar carioca.
"Sem a música afro-brasileira, que no decorrer de muitas décadas sempre se renovou graças às inspirações da Bahia, a música do Rio de Janeiro seria hoje talvez pouco diferente da que há em Berlim ou em Nova York. Mas sem os músicos de famílias de descendência européia ela também não seria o que é. Eles levaram para o Brasil não só o know-how em termos de composição e arranjos, como também a melodia das canções portuguesas e sua poesia", afirma o autor Schreiner.
Um expert em música latino-americana
O berlinense nascido em 1943, vem dedicando grande parte de sua vida à difusão da música latino-americana na Alemanha. Em 1978, Claus Schreiner lançou o único livro escrito em alemão sobre a música do Brasil. Intitulada simplesmente Música Popular Brasileira, a obra de 365 páginas já ganhou três edições e rendeu uma versão em inglês, publicada em 1993 em Londres e Nova York por Marion Boyars.
Em 1982, o dono da Tropical Music lançou Música Latina, fruto de uma convivência intensa com a música das Américas do Sul e Central, que começara em 1970. Tendo trabalhado em diversas emissoras de rádio alemãs, para as quais produziu centenas de programas de música latino-americana, Schreiner tem ainda em sua bibliografia títulos como Jazz Aktuell, de 1967, e Flamenco Gitano-andaluz, de 1985.
Tão importantes quanto seus livros, são os CDs lançados pela Tropical Music. Só de música brasileira são 19, com nomes que vão de Milton Nascimento a João Bosco, passando por Martinho da Vila, Baden Powell, Sivuca, Sebastião Tapajós, Raimundo Sodré e, o melhor de todos, Divino Samba, uma impecável coletânea com 23 sambas de Cartola, que chegou às lojas alemãs em 1999.
Recentemente, a Tropical Music lançou em DVD e CD o filme e a trilha-sonora do documentário Brasileirinho, dirigido pelo cineasta finlandês Mika Kaurismäki, que enfoca o choro e alguns de seus principais intérpretes da atualidade, como Paulo Moura, Trio Madeira Brasil e Yamandu Costa.
A cidade da música
Samba do Caju é uma ode ao Rio de Janeiro e sua música que não ignora, no entanto, os gênios musicais de outra origem, como os baianos Dorival Caymmi, João Gilberto, Caetano Veloso e Gilberto Gil, o paranaense Arrigo Barnabé, nem a lusitana Carmen Miranda, a "falsa baiana", grande ícone brasileiro de Hollywood.
O narrador fictício fala sobre o reinado do pernambucano Luiz Gonzaga, o bombardeio dos navios brasileiros pelos submarinos alemães na Segunda Guerra Mundial, sobre o fatídico golpe militar de 1964 e o posterior AI-5, além de citar o Tropicalismo, a música de protesto de Geraldo Vandré, e um pouco sobre a difusão da música brasileira pelo mundo afora.
E como não poderia deixar de ser, por ter o Rio de Janeiro como berço, Chico Costa chega até o funk carioca e a tenebrosa realidade do narcotráfico, imposta à cidade outrora maravilhosa. Isso tudo é ilustrado com centenas de trechos musicais de clássicos como Mamãe Eu Quero, de Jararaca e Vicente Paiva e uma deliciosa e rara versão de Você já Foi à Bahia?, defendida pelo próprio Caymmi em registro de pura espontaneidade.