Segurança alimentar sob risco de retrocesso
14 de janeiro de 2019"Quem tem fome tem pressa." Com a frase simbólica, o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, liderou em 1992 o Movimento pela Ética na Política. Era um clamor de organizações da sociedade civil contra a corrupção numa época em que mais de 32 milhões de brasileiros passavam fome no país. A intensa mobilização articulada durante o governo de Itamar Franco resultou na criação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), extinto pelo presidente Jair Bolsonaro no seu primeiro dia no Planalto.
O órgão consultivo era diretamente ligado à Presidência da República e formado por dois terços de representantes de organizações da sociedade civil. As políticas originadas no Consea, com a participação democrática e voluntária dos membros, tiveram um papel-chave para tirar o Brasil do Mapa da Fome da ONU, em 2014, e tornaram o órgão uma referência internacional.
"De onde o Betinho estiver, ele está realmente desesperado com a situação que estamos passando. Começamos 2019 praticamente certos de que entraremos de novo no Mapa da Fome da ONU ou estaremos muito próximos de voltar, e é exatamente neste ano que se extingue o Consea", afirma Kiko Afonso, coordenador da ONG Ação da Cidadania, organização fundada por Betinho e que trabalha por políticas públicas contra a fome e a miséria.
"É um surrealismo que só o Brasil consegue produzir. O governo olhar para a extinção do conselho como algo positivo é algo incompreensível", lamenta.
A Medida Provisória 870∕2019, a primeira assinada por Bolsonaro, alterou as disposições da Lei Orgânica de Segurança Alimentar (Losan), de 2006, que tem o objetivo de assegurar o direito humano à alimentação adequada. O governo extinguiu as atribuições do Consea e também revogou os pontos sobre a composição do conselho.
As diretrizes e programas sobre segurança alimentar e nutricional estão agora vinculadas ao Ministério da Cidadania. Não se sabe se a sociedade civil ainda terá voz nas políticas de segurança alimentar.
Em nota, o Ministério da Cidadania informou que não apenas o Consea, mas todos os conselhos vinculados à Presidência da República foram extintos com a justificativa de que a "entrega governamental se tornará mais célere". A pasta também frisou que as competências dos antigos conselhos serão mantidas "em outros órgãos".
"O Consea deixa de ser o coração da Presidência da República, como um órgão estruturante, e passa a ser apenas um apêndice das políticas públicas do governo", explica Larissa Mies Bombardi, professora do Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana da Universidade de São Paulo (USP) . "Isso é uma grande perda."
A ONG Ação da Cidadania publicou uma nota de protesto ao governo. "Na prática, o Consea está sendo extinto. Funcionários já estão sendo informados de que serão realocados para outras áreas. Há um desmonte”, diz Afonso. "Ninguém foi informado sobre isso. Queremos abrir um canal de diálogo com o governo para a volta do Consea. Calados não podemos ficar diante dessa arbitrariedade."
Com o aumento dos índices de desemprego e miséria no país, é dado como praticamente certo que o Brasil voltará em 2019 à lista de países onde a fome é alarmante no mundo. Dados divulgados pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) em setembro do ano passado mostram que o combate à fome no Brasil se estagnou. Em 2017, mais de 5 milhões de brasileiros estavam em situação de insegurança alimentar.
Incerteza à vista
Criado em 1993, o Consea era atuante no acompanhamento e formulação de políticas públicas de combate à fome no Brasil, como o Programa Fome Zero e o Bolsa Família, além de políticas para a melhoria da qualidade da alimentação da população, desde a cadeia de produção até o consumidor. Entre os temas discutidos, também estavam as embalagens dos produtos, os alimentos ultraprocessados e a rotulagem de alimentos transgênicos.
"A atuação do Consea permitiu um salto de excelência, porque além de olhar para a questão da segurança alimentar, o conselho avançou na questão da soberania alimentar, com foco na qualidade dos alimentos que chegam ao consumidor", avalia Bombardi.
"O Consea teve um papel fundamental na formulação da Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica, do Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar e também no controle do uso de agrotóxicos", exemplifica.
Entre os representantes da sociedade civil no Consea estavam o Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), o Instituto Alana, voltado para o desenvolvimento da infância, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA).
"A importância do Consea é óbvia. A participação da sociedade civil na proposição e discussão de questões referentes à segurança alimentar, desde a questão da fome até o uso de agrotóxicos e formas nocivas de alimentação, foi crucial. Tudo isso agora está comprometido, porque a sociedade civil passa a não contar mais com fóruns de participação junto ao governo e perde esse canal de diálogo direto", diz Afonso.
Além do Consea nacional, há também os conselhos estaduais e municipais, que são independentes do órgão federal. O temor é que a decisão do governo influencie governadores e prefeitos a também extinguirem os conselhos locais.
Alimentação como um direito
O direito humano à alimentação adequada está contemplado no artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos e no artigo 6º da Constituição Federal. Para Bombardi, a organização ministerial do governo Bolsonaro deve agravar os problemas envolvendo a segurança e soberania alimentar no Brasil.
"A organização ministerial desse governo que, por exemplo, vincula a reforma agrária ao Ministério da Agricultura, sem a autonomia que o Incra possuía, e vincula a segurança hídrica ao Ministério do Desenvolvimento Regional irá aprofundar as desigualdades sociais e, consequentemente, piorar a situação da fome no país", observa.
"Por que extinguir um órgão que é meramente consultivo para o governo e que contribuiu tanto ao longo desses anos para a política alimentar brasileira?”, questiona Afonso. "O governo ainda não se manifestou sobre os motivos da extinção do Consea. Isso vem junto com ações que prejudicam questões indígenas e fundiárias, além do controle de ONGs, que se veem ameaçadas de serem monitoradas pelo governo", critica o diretor da ONG Ação da Cidadania.
Pelo Twitter, Dom Mauro Morelli, que juntamente com Betinho coordenou a criação do Consea, lembrou a importância do envolvimento da sociedade na articulação de políticas de combate à fome no país.
"Da indignação contra a corrupção surgiu um movimento de solidariedade suprapartidário e pluralista, com mais de sete mil grupos autônomos, empenhados em mudar o Mapa da Fome através de ações emergenciais e estruturais", escreveu. "Tristemente, observo agora o clamor contra a corrupção dividindo o país, despertando o ódio e agressão."
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