Rosemarie Trockel: para porcos e pessoas
27 de outubro de 2005"Quem é o melhor artista?... Você está querendo me provocar? Agora, diga aí quem é o melhor artista?..." Uma autoritária Rosemarie Trockel ataca incessantemente em seu vídeo Continental Divide (1994), no qual se mantém prisioneira de si própria.
A vítima da agressão verbal é sua "sósia”: alter ego confinado, intimidado e questionado a respeito da situação do artista. Impiedosamente vão sendo extraídos à força nomes de sua boca: Mangold, Gilbert & George, Baselitz, Kippenberger. Em algum momento, sai também o nome "certo”: Trockel.
Desejo e pathos
Enquanto isso, vai sendo levado adiante o autoquestionamento angustiante e paradoxal. O interrogatório não consegue esclarecer nada, pois não há respostas. Nenhum barômetro de tendências ou bússola pode realmente avaliar as hierarquias do mercado de artes.
A única sensação que resta é a de que na pergunta repetida infindáveis vezes aos gritos – quem é o melhor artista? – vêm à tona temas como concorrência, inveja, autoquestionamento, amargor, egoísmo e sede de poder. Desejo e pathos parecem não ter fronteiras no vídeo de Trockel.
Tricotando com ironia
No cenário das artes, Rosemarie Trockel acabou conseguindo atingir o que já havia servido de título para um de seus trabalhos anteriores: Ich wollte schon immer etwas Besonderes sein (Sempre quis ser algo especial). Hoje, ela é uma das artistas mais requisitadas internacionalmente. Um reconhecimento atingido graças às suas imagens tricotadas.
Em meados da década de 80, Trockel se apropriou desta técnica banal e "feminina", com a qual são associados produtos artesanais – tanto de bom quanto de mau gosto – como meias ou panos de prato.
Mesmo que naquele momento toda a Alemanha Ocidental estivesse sendo tomada por um verdadeiro boom do tricô, que tinha como adeptos desde estudantes universitários até políticos no Parlamento, esta obra de Rosemarie Trockel exposta pela primeira vez no Rheinisches Landesmuseum de Bonn, no ano de 1985, deixou até observadores liberais perplexos.
Alguns deles não conseguiram nem mesmo posteriormente entender como uma mulher bem informada como aquela poderia, em pleno fim do século 20, dar a uma colagem de fotos o título Leben heisst Strumpfhosen stricken (Viver é tricotar meias), de 1998.
Ao observar com mais cuidado o trabalho de Trockel, não há, porém, como ignorar as altas doses de ironia nele contidas. Ao pegar meias compridíssimas, a artista comenta o papel social freqüentemente restritivo da moda.
Pervertendo clichês
Para isso, não cria ela própria suas malhas, mas manda aplicar motivos como foice e martelo ou o coelhinho da Playboy, replicados pelo computador, em roupas e bonés. A produção industrial pervertendo o clichê da esposa que manuseia sua agulha de tricô.
Ao mesmo tempo, Trockel questiona a idéia da autoria da pintura clássica e denuncia a dominação masculina da minimal art através do processo artesanal. Criticamente ela reflete sobre as atribuições clássicas que levam à constituição da feminilidade, bem como sobre a estética feminista de trabalhos manuais. Influenciando decisivamente o desenvolvimento de um discurso feminista na arte. Sem deixar de continuar, porém, odiando o conceito de "arte feminina".
Marca registrada "à beira do fogão"
"Quem não se defende acaba à beira do fogão." Estas e outras palavras de ordem feministas foram ouvidas por Rosemarie Trockel enquanto era estudante universitária. Em 1971, ela começou a freqüentar uma Escola Superior de Pedagogia, tendo cursado, entre outras disciplinas, Antropologia, Sociologia, Teologia e Matemática. Seu objetivo era se tornar professora.
Três anos mais tarde, começou a estudar pintura na Escola de Artes Aplicadas (Werkkunstschule) de Colônia e rodou seu primeiro filme em super-8: Sei kein Kind von Traurigkeit (Não seja filho da tristeza).
Mesmo depois disso, Trockel ainda não se sentia pronta para entrar no mercado de arte. Apenas em 1980 conheceu a arquiteta Monika Sprüth, que viria a ser sua futura galerista. Com ela viajou para os EUA, onde se encontrou com artistas como Jenny Holzer, Barbara Kruger, Louise Lawler e Cindy Sherman. Na volta se aproximou, em Colônia, do grupo Mühlheimer Freiheit e começou a trabalhar intensamente.
Trockel desenvolveu a partir daí uma posição menos centrada na pintura e começou a observar detalhadamente formas femininas de comportamento.
Entre o lúdico e a frieza da abstração
A ambivalência entre posições socialmente críticas e citações irônicas que remetem à história da arte, a mistura entre o lúdico do objeto à la Duchamp e uma abstração fria de formas passam a compor a estratégia típica de Trockel: trazer à tona o trivial. E vice-versa.
A artista, porém, ainda tem outras obsessões: através de imagens de ovos de galinha em desenhos, vídeos e colagens de fotos, Trockel está sempre relembrando as artimanhas implícitas na socialização da mulher.
Colônia/Lã, Paris/Brigitte Bardot
Até hoje, a relação ambivalente entre pessoas e animais desempenha um papel importante na obra de Rosemarie Trockel. Primeiro, um tigre passa sorrateiramente por seu primeiro filme. Logo depois, uma traça rói um logotipo tricotado por ela própria.
Uma forma de dizer que a máxima de Beuys de que todo homem é um artista não passa de arrogância masculina. Pois, de acordo com Trockel, "todo animal é um artista”. Logo, não é de se assustar que ela dê atenção a parasitas e insetos desprezados pelo homem, criando abrigos para estes, junto com o artista e amigo Carsten Höller.
Sua Haus für Schweine und Menschen (Casa para porcos e pessoas) causou furor na Documenta X, em 1997. Em seguida foi a vez do Mückenbus (Ônibus de moscas), um abrigo para traças, e Haus für Tauben, Menschen und Ratten (Casa para pombas, pessoas e ratos), uma obra levada à Expo de Hannover, em 2000. Ou seja, Trockel não permite que se vejam com qualquer tipo de fobia ou que se ignorem pequenos devoradores de lixo.
Misturas disparatadas?
Animais, pessoas, ovos, lã, trempes de fogão, vídeos, desenhos, objetos, instalações – misturas que podem parecer disparatadas. Faz parte dos padrões de recepção do trabalho de Trockel remeter à amplitude de sua obra e de sua representação. A própria artista tentou ordenar seus trabalhos por ocasião de uma retrospectiva de sua obra relativa ao período entre 1986 e 1998.
O critério usado foi o do local de origem: Colônia/Lã, Paris/Brigitte Bardot, Opladen/Vídeos, Bruxelas/Pocilga, Viena I e II/Modelos de gesso + Esboços, Ídolos de Beleza, Schwerte/Desenhos, Düren/Namorados e Hamburgo/Seaworld.
Os leitmotive selecionados englobam temas como erotismo, feminismo e antropologia. Modelos, motivos e mídias estão intricados, colocando em xeque percepções tradicionais e modelos de comportamento sociais. Para isso a artista mostra, sem pudor, também o constrangedor ou o banal.
"Não sou estrela"
Trockel foi a primeira mulher a representar a Alemanha na Bienal de Veneza, em 1999, onde esteve presente com uma trilogia em vídeo sobre o tempo. Entre cenas gravadas em parques infantis e performances sonâmbulas, nas quais se brinca com atmosferas do passado e do presente, Trockel expõe o observador ao poder do olhar através da projeção de enormes olhos de mulheres.
Nos últimos anos, Rosemarie Trockel recebeu vários prêmios importantes dentro da Alemanha. Seu trabalho teve exposições individuais no Centro Georges Pompidou, em Paris (2000); no Moderna Museet, em Estocolmo (2001); e no Dia Center for the Arts, em Nova York.
E sua obra já foi também literalmente às alturas, sendo exposta a 2964 metros de altitude. Ali, Trockel instalou sua Miss Wanderlust (Miss Desejo de Fazer Caminhadas), obra de 2002. Uma senhorita feita com espuma de PVC, desconsolada com saudades de casa, observa com a ajuda de um binóculo o panorama das geleiras nos Alpes. Expor no ápice da mais alta montanha alemã foi "uma aventura”, diz Trockel. Algo muito especial.