Renúncia de deputado evidencia país hostil a LGBTs
26 de janeiro de 2019O casal Marcelo* e Ricardo* levou dez anos para realizar o sonho da adoção. Em 2016, tornaram-se pais de Mateus*. Eles não contavam que a alegria da chegada do filho seria interrompida de forma tão abrupta: após dois episódios de ameaça a eles e ao menino vivenciados nas ruas do Rio de Janeiro, estão de malas prontas para morar em Portugal.
Sair do país não estava nos planos. Professores, ambos são bem-sucedidos. Marcelo tem um comércio de flores, enquanto Ricardo dá aulas em um renomado colégio particular do Rio. O quadro mudou durante as eleições do ano passado, quando a família passou a conviver com medo e situações concretas de ameaças.
Mateus, que fará três anos em abril, está habituado a responder que tem "dois papais" quando perguntam por sua mãe. Foi o que fez em uma tarde no parque frequentado pela família, quando uma menina insistia para que ele aceitasse um doce. Ao ouvir o diálogo, o pai dela questionou Marcelo, que tentou desviar o assunto.
"De repente, o cara puxou o cabelo dele, que estava comprido na época, e falou ‘só podia ser coisa de boiola esse cabelo grande'. Quando o Mateus tentou andar, sentiu dor e chorou. O Marcelo discutiu com o cara, algumas pessoas na praça se meteram, e fomos embora com medo", lembra Ricardo. Dias antes, um homem vestido com uma blusa alusiva ao então candidato Jair Bolsonaro cuspiu na direção deles, quando brincavam com o filho na rua.
A decisão de sair do país foi tomada posteriormente. Já vivendo sob o trauma dos acontecimentos anteriores, o casal negou um pedido de Mateus para dar a mão aos dois pais na rua. Eles passavam em frente a um bar repleto de apoiadores de Bolsonaro e acharam melhor pegá-lo no colo. Ao chegar em casa, perceberam que não podiam viver dessa forma.
"Entramos numa neurose muito grande de se nossa família era segura, adequada para ele", diz Ricardo. "Rapidamente, a gente se deu conta de que não fazia sentido. Fazemos de tudo para criar nosso filho da melhor forma possível no meio de pessoas preconceituosas, que estão sendo violentas com a gente. Elas é que não são adequadas para as crianças", diz.
"Estávamos nos sentindo inseguros e com medo de nosso filho achar que sua família não é adequada para ele. Então resolvemos tomar essa decisão de mudar nossos planos e aproveitar que o Marcelo tem a cidadania portuguesa", explica.
Ricardo ainda ficará com o filho no Brasil até abril. Nesse período, Marcelo tentará mapear oportunidades de emprego e um lugar para a família morar no novo país. Na última vez em que mudaram de casa, os dois viveram uma situação insólita.
"Quando eu disse que éramos um casal com filho, o proprietário do apartamento que nos interessou adorou nosso perfil. Quando enviamos a documentação, ele mudou de ideia, porque viu que éramos dois homens. Depois de desligar na nossa cara, ele me respondeu no Whatsapp com um vídeo falso do Jean Wyllys. Trazia uma mensagem sobre o fim da 'ditadura gay' no Brasil assim que o capitão fosse eleito", narra Ricardo.
A vida estável fica para trás e dá lugar à indefinição. Uma decisão semelhante anunciada na última quinta-feira (24/01) colocou em evidência o clima de hostilidade contra a população LGBT no Brasil.
O deputado reeleito Jean Wyllys (Psol-RJ), que está fora do Brasil, desistiu do novo mandato e não irá retornar ao país. O parlamentar alegou ter recebido sucessivas ameaças de morte, as quais teriam se intensificado após o assassinato da vereadora Marielle Franco, de seu partido, em março do ano passado.
Grande responsabilidade
Wyllys será substituído por David Miranda, vereador pelo Rio de Janeiro, também do Psol. Suas principais pautas são a luta contra o racismo, a LGBT-fobia e a criminalização da pobreza, além da preservação dos direitos dos servidores públicos do Rio.
Miranda, de 33 anos, é casado com o jornalista Glenn Greenwald e fez parte da equipe que investigou as denúncias de espionagem do governo americano feitas por Edward Snowden. O deputado foi detido pelo governo britânico em 2013 e processou o governo do país, vencendo a ação. Ele admite que o medo por eventuais perseguições é inegável.
"Nós somos o país que mais mata LGBTs no mundo. Existe uma responsabilidade muito grande em substituir o Jean, um precursor em várias pautas, especialmente porque temos um presidente que não nos representa, abertamente LGBT-fóbico. É claro que tenho receio do que pode acontecer comigo, mas, ao mesmo tempo, Brasília precisa de alguém que possa falar por essa população, que, mais do que nunca, necessita de apoio", disse Miranda à DW Brasil.
Agravamento das hostilidades
De acordo com relatório do Grupo Gay da Bahia (GGB), que contabiliza anualmente o número de vítimas da LGBT-fobia no Brasil, o ano de 2018 registrou 420 crimes desse tipo – uma queda de 6% em relação a 2017, quando 445 foram registrados. O dado deste ano se divide em 320 assassinatos e 100 suicídios. Trata-se de um crimes com elevado índice de subnotificação, pois é comum serem tratados como delitos comuns em delegacias de polícia.
Criado em 2010 com o nome Rio Sem Homofobia, o programa Amizade Rio LGBT apresentava, desde 2011, uma tendência de queda progressiva no número de atendimentos prestados a vítimas desse tipo de intolerância. De 11.973, naquele ano, a cifra passou para 2.144, em 2017. Entretanto, no ano passado o volume de casos que chegou ao programa saltou para 4.810 – mais que o dobro do ano anterior.
Chama atenção o aumento da demanda por apoio psicológico: de 299 casos, em 2017, para 1.327, em 2018. O sentimento de medo é uma constante nos relatos de pessoas LGBT e ativistas desse campo ouvidos pela DW Brasil.
Symmy Larrat, primeira travesti a assumir a presidência da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), aponta que a comunidade vinha conquistando uma aceitação social cada vez maior nas últimas décadas, quadro que mudou de forma brusca desde o último ano.
"Nós saímos do armário há muito tempo, e não pretendemos voltar. O problema é que pessoas homofóbicas decidiram sair também. Isso tem criado um real sentimento de medo e insegurança entre nós. Se somos vítimas de ameaças nos ônibus, comércios e espaços de trabalho, como vão nos aceitar no Legislativo?", questiona.
A presidente da ABGLT acrescenta que as sinalizações do governo Bolsonaro não apresentam uma perspectiva de combate a esse quadro, pelo contrário. Em sua primeira medida provisória, o presidente eleito instituiu que a promoção dos direitos dessa população ficará a cargo de diretoria subordinada à Secretaria Nacional de Proteção Global, o que representa perda de status em relação ao tratamento dado anteriormente. Além disso, ele não explicitou diretrizes para a população LGBT.
"O apoio do Estado nós nunca tivemos, o medo agora é que haja uma institucionalização da homofobia. Temos um presidente que defende abertamente essa posição. Cada vez mais, vemos nossos irmãos procurando andar em grupo por relatar agressões e situações de intolerância no convívio diário", relata.
O relatório do Grupo Gay da Bahia ressalta a situação de especial vulnerabilidade da população trans. As estatísticas apontam que o risco de uma pessoa trans ser assassinada no Brasil é 17 vezes maior do que um gay. Enquanto os Estados Unidos, com 330 milhões de habitantes, registraram 28 assassinatos de transexuais no ano passado, houve 164 ocorrências desse tipo no Brasil, cuja população se aproxima dos 208 milhões.
O receio de agravamento da hostilidade contra a população LGBTI com a mudança de governo é compartilhado por Keila Simpson, presidente da Associação Nacional de Travestis e Transexuais.
"Temos constatado que a violência de todo tipo aumentou consideravelmente contra a população trans. Isso teve um ápice durante a eleição, mas continua em alta. Não temos nenhuma perspectiva de que esse quadro mude quando o próprio presidente é um fomentador dessa violência. Com essa postura vindo de cima, obviamente, os cidadãos comuns se sentem no direito de praticar essas ações", avalia Simpson.
*os nomes foram modificados para preservar a identidade das fontes.
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