Por que agricultores têm tanta influência política na França
27 de fevereiro de 2024O Salão da Agricultura, feira internacional do setor na França que teve início neste final de semana em Paris, é geralmente encarada por políticos como uma oportunidade de mostrarem ao seu eleitorado o quão pé no chão eles são – literalmente.
Mas não se sabe se, desta vez, as concessões recentes do governo aos produtores rurais serão suficientes para aplacar a ira do setor, cuja influência parece inversamente proporcional ao seu peso no PIB francês, de cerca de 1,6%.
A julgar pela recepção hostil ao presidente Emmanuel Macron no primeiro dia de evento – vaias e assobios de grupos que têm protestado há semanas contra perdas financeiras e o que apontam como burocracia excessiva –, os fazendeiros parecem esperar mais apoio do governo.
A reação do governo a ações como essa revela o poder dos produtores rurais, afirma Faustine Bas-Defossez, diretora para natureza, saúde e meio ambiente do European Environmental Bureau, uma rede que reúne 180 ONGs em 40 países. "As autoridades apertaram o cerco contra outros movimentos, como o contrário a uma reforma da previdência, no ano passado, usando cassetetes e gás lacrimogêneo. Mas mantiveram distância quando 12 mil fazendeiros bloquearam estradas por todo o país durante semanas", afirma.
A polícia só interveio em raras ocasiões – por exemplo, quando dezenas de manifestantes invadiram um mercado internacional em Rungis, ao sul de Paris, para bloqueá-lo.
Proximidade com a política
"O poder político dos fazendeiros está bem estabelecido em todos os níveis – através das numerosas câmaras de agricultura, mas também porque muitos políticos locais são fazendeiros", explica Bas-Defossez.
A relação entre o setor e a classe política é tão estreita que há quem, como Pierre-Marie Aubert, fale em "administração compartilhada". "O governo decide nossa política agrária junto com a maior associação do ramo, a FNSEA, que representa cerca de um quarto dos fazendeiros", afirma Aubert, que é diretor para políticas rurais e de alimentação no Instituto para Desenvolvimento Sustentável e Relações Internacionais de Paris. "É assim há 50 anos, também em outros países, como a Alemanha."
Segundo ele, o fato de o setor ter uma estrutura organizacional clara e representar uma categoria relativamente pequena – de acordo com o governo, há cerca de meio milhão de produtores rurais na França – torna o seu trabalho de lobby mais simples se comparado a outros grupos de manifestantes, que muitas vezes são mobilizados por um número muito maior de entidades.
Além disso, continua Aubert, fazendeiros têm poder porque são os donos da terra, ao passo que um governo se legitima politicamente quando é capaz de alimentar sua população. "E pudemos ver como isso é importante durante as revoltas de 2007", diz ele, referindo-se a uma crise de fome que gerou protestos violentos em países na África e Ásia entre 2007 e 2008.
A pandemia de covid-19 e a invasão da Ucrânia pela Rússia no início de 2022 teriam demonstrado a importância de ter um setor agropecuário forte e menos dependente de fornecedores estrangeiros. É por isso, segundo Aubert, que o governo rapidamente atendeu a diversas demandas dos fazendeiros, fazendo promessas adicionais pouco antes do Salão de Agricultura: menos burocracia, mais subsídios a produtores de vinho, melhor implementação de leis que garantam uma remuneração justa a mercadorias negociadas no atacado, corte de impostos para o diesel agrícola e suspensão de medidas que reduziriam o uso de agrotóxicos.
Setor conseguiu paralisar acordo Mercosul-UE
Macron levou ainda a pauta dos fazendeiros à União Europeia, atenuando uma regra do bloco que exigia dos produtores a preservação de 4% de suas terras em prol da biodiversidade, e torpedeando o acordo de livre comércio com o Mercosul, ao qual os agricultores franceses se opõem sob o argumento de que geraria uma competição injusta.
Para o economista David Cayla, da Universidade de Angers e membro do coletivo de esquerda The Dismayed Economists (Os Economistas Desiludidos, em tradução livre), o acordo Mercosul-UE é, de fato, uma má ideia. "Os salários e padrões ambientais são consideravelmente mais baixos na América do Sul", diz Cayla. "Além disso, as fazendas são maiores e produzem mais com relativamente pouco trabalho, o que dá aos produtores de lá uma vantagem competitiva."
O economista defende uma política agrícola mais protecionista, semelhante à que a França pratica no setor cultural sob o argumento de que produtos culturais não devem ser tratados como commodities. Essa mesma ideia também foi recentemente encampada pelo próprio governo. "Um sistema desses poderia proteger nosso setor agrícola e estabelecer as bases para redes locais de alimentos", explica Cayla.
Já o professor emérito de política agrícola europeia no Trinity College de Dublin Alan Matthews pensa diferente. O acordo com o Mercosul "só permitiria tarifas de importação reduzidas para uma quantidade limitada de produtos agrícolas". "E é importante, na atual situação geopolítica tensa, por exemplo com relação à Rússia, ter acordos comerciais com outras partes do mundo."
É preciso uma perspectiva mais sustentável
Para Aubert, o apoio do governo aos agricultores é mais um sinal de como os políticos estão temerosos da influência deste setor, principalmente em ano de eleições parlamentares europeias, marcadas para junho.
"O partido rural holandês Boer-Burger Beweging pode ajudar a extrema direita do país a chegar ao poder. A extrema direita da Alemanha tem se aproveitado dos recentes protestos dos agricultores e não é à toa que a política francesa de extrema direita Marion Marechal Le Pen, sobrinha da ex-candidata à presidência Marine Le Pen, foi ver os agricultores protestando em Bruxelas", destacou Aubert.
A ambientalista Bas-Defossez diz que isso é uma ameaça à democracia europeia. "Os agricultores franceses estão tentando aproveitar a onda do sentimento anti-UE, embora sejam os maiores beneficiários da política agrícola do bloco europeu".
"Eles estão fazendo do Acordo Verde da UE, que deveria garantir uma transição para uma sociedade mais sustentável, um bode expiatório, embora o acordo ainda não tenha tido nenhum impacto concreto sobre o setor agrícola", acrescentou Bas-Defossez.
Harriet Bradley, do Instituto de Política Ambiental Europeia, com sede em Bruxelas, compartilha das mesmas preocupações. "Entendemos os desafios sociais e econômicos que os agricultores estão enfrentando, mas é uma falta de visão ceder às suas demandas por menos regulamentações ambientais em vez de criar uma perspectiva sustentável de longo prazo que os torne mais resilientes às condições climáticas extremas", reflete Bradley.
Responder a esse desafio, segundo Aubert, requer mudanças sistêmicas. "Precisamos criar um sistema que valha a pena, do ponto de vista econômico, produzir de forma mais ecológica, caso contrário, não haverá incentivo para mudar".