Poesia e outras drogas
22 de dezembro de 2005Ainda me lembro com exatidão do efeito dessa injeção. Súbito fiquei totalmente desperto. Um sentimento de felicidade, estranho e difícil de descrever, tomou conta de mim.
A morfina deu asas ao escritor suíço Friedrich Glauser, na época da Primeira Guerra Mundial. Seu corpo tornava-se "um só sorriso", o cotidiano perdia a importância, o mundo parecia transmutar-se.
Durante o século 19, os autores procuraram conscientemente essa outra percepção do mundo, através das drogas. Para então descrevê-la, buscando novos caminhos poéticos.
Os poetas românticos foram os primeiros a explorar dessa forma o misterioso mundo do inconsciente. Assim, os Hinos à noite de Novalis foram compostos sob o efeito do ópio.
Também o escocês Robert Louis Stevenson inventou num delírio alucinótico a dupla personalidade de seu Dr. Jekyll e Mr. Hyde. E, na França, o grupo de poetas ligados a Charles Baudelaire criou um verdadeiro "clube do haxixe".
Ode ao pó branco
No século 20, a droga da moda para os poetas foi a cocaína:
A dissolução do eu, doce, profundamente desejada
Tu me dás...
Assim Gottfried Benn cantou em verso o pó branco. Secundado por William S. Burroughs, em seu romance autobiográfico Junkie:
Se Deus jamais criou alguma coisa melhor, então ele a guardou para si.
Seja como for, pelo menos o LSD, a mescalina e os cogumelos mágicos, Ele não reservou para uso pessoal. As novas drogas estariam destinados a ampliar a consciência da geração seguinte de autores, os hippies.
Novos mundos ou subjetividade pura?
Uma coisa é certa: a literatura mundial seria bem mais pobre, se todos os artistas fossem abstinentes e tão obedientes à disciplina burguesa como um Thomas Mann.
Mas quão real é esse vislumbre de outros mundos? O próprio Baudelaire já relativizava em seu poema sobre o haxixe:
Ele revela ao indivíduo nada além de si mesmo.
E como descrever à altura o experimentado durante o delírio? E se, expressa em linguagem sóbria, a revelação soar apenas banal?
No torpor da droga, o escritor norte-americano Aldous Huxley chegou a uma conclusão que até a ele mesmo pareceu pouco poética:
No universo tudo está em ordem.
Pacto com o demônio
E por fim: quem quer saber o que amalgama o mundo, em seu âmago mais profundo, acaba selando um pacto com o diabo. Em outras palavras: a experimentação com alucinógenos, visando escrever melhor, não levou poucos autores à dependência.
Como prova o caso de Benjamin von Stuckrad-Barre, celebrado literato pop de nossos dias. Em entrevista a um jornal, ele reconheceu em 2004 como chegara à beira do abismo, através do consumo de cocaína, esperando recolher material para um romance borbulhante de vida. Até reconhecer – ainda a tempo:
Meu instrumento de trabalho, o cérebro, está em jogo.
Hoje em dia Von Stuckrad-Barre se alegra de não haver publicado o "bla-bla-bla nonsense" produzido sob drogas.
Estrada sem retorno
Outros não acham mais a saída para a dependência. Georg Trakl, Klaus Mann, Hans Fallada, Jack Kerouac, Irmgard Keun e Joseph Roth: esses e muitos outros autores morreram em conseqüência do consumo excessivo de álcool ou narcóticos.
Friedrich Glauser, morto pela morfina aos 42 anos de idade, não se iludia quanto ao fim da história:
Todas as justificativas inventadas para justificar o vício são muito bonitas do ponto literário ou poético. Concretamente, é uma desgraça. Pois a pessoa se arruína, a si e a sua vida.