"Pode-se vislumbrar peculato e corrupção no caso das joias"
10 de março de 2023A tentativa de trazer ao Brasil joias no valor de R$ 16,5 milhões, sem pagar impostos à Receita Federal e incorporando-as diretamente ao seu patrimônio pessoal, é o mais novo escândalo que coloca o ex-presidente Jair Bolsonaro como alvo de mais uma investigação judicial.
Envolvidos na história estão a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro, para quem as joias teriam sido destinadas; o ex-ministro de Minas e Energia Bento Albuquerque, cujo assessor levava os objetos; o ex-chefe da Receita Federal Julio Cesar Vieira Gomes, que teria tentado interceder junto aos servidores para a liberação do presente milionário; o sargento da Marinha Jairo Moreira da Silva, que foi filmado tentando a liberação das joias no fim do ano passado; e o ex-presidente que admitiu, em entrevista à CNN Brasil, ter incorporado um segundo pacote de joias e objetos valiosos ao seu acervo pessoal.
Pela legislação, um presente de um governo estrangeiro ao Estado brasileiro deve ir para um acervo público, não podendo ser transferido individualmente a agentes públicos de uma administração específica.
Em entrevista à DW Brasil, a professora da FGV Direito SP Eloísa Machado diz que, se comprovada pelas investigações, a prática pode configurar crime de peculato. Além disso, acrescenta Machado, se os presentes foram uma contrapartida a negócios realizados com o governo da Arábia Saudita – que adquiriu uma refinaria da Petrobras um mês após a viagem da comitiva brasileira –, também é possível vislumbrar o crime de corrupção.
Além do caso das joias, Bolsonaro é alvo de inquéritos no Supremo Tribunal Federal (STF), que tratam da disseminação de fake news na pandemia, da interferência na Polícia Federal, de influência nos atos de vandalismode 8 de janeiro em Brasília. Já um inquérito civil do Ministério Público Federal (MPF) sobre a crise humanitária dos yanomami também apura a responsabilidade do ex-presidente na desassistência aos indígenas.
"O que impressiona é a quantidade e a variedade de atos ilícitos que vêm à tona nas investigações, sobretudo agora que não há mais um filtro feito pela PGR em razão da ausência da prerrogativa de foro por função, já que é ex-presidente", afirma Machado.
DW Brasil: Como podemos classificar o caso do recebimento dos "presentes" do governo da Arábia Saudita pelo ex-presidente Jair Bolsonaro? Quais as consequências jurídicas e políticas esse caso pode ter para o ex-presidente?
Eloísa Machado: O recebimento de presentes por governos é regulado por diferentes trâmites e critérios. Se de fato era um presente ao Estado brasileiro, não poderia ser incorporado ao patrimônio de uma pessoa que ocupou o governo.
Com a apropriação indevida de um bem do Estado brasileiro, incorre-se em prática que pode ser considerada criminosa. No caso, é possível vislumbrar, ao menos em tese, o crime de peculato.
Na hipótese de não ser um presente para o Estado, mas um tipo de contrapartida pessoal a facilitação de negócios realizados, pode-se vislumbrar a prática de outros crimes, como corrupção. Uma investigação é capaz de oferecer os contornos fáticos necessários ao correto enquadramento jurídico.
O quão graves são esses indícios e o que eles mostram sobre a confusão entre "privado" e "público" durante a administração Bolsonaro – já que o ex-presidente tentou levar para o próprio acervo objetos que valem milhões, numa tentativa de não se submeter à legislação?
Há indícios de que os trâmites foram desconsiderados e de que houve uma atuação de servidores da Presidência da República e de ministérios para burlar exigências normativas, indícios estes suficientes para que uma investigação seja feita e aprofundada.
Outros inquéritos em andamento contra Jair Bolsonaro também tratam de condutas pouco republicanas, seja no âmbito eleitoral com o uso da máquina pública em proveito de sua candidatura, seja na Justiça comum.
Além de Bolsonaro, há como envolvidos um ex-ministro, um oficial militar, o ex-chefe da Receita Federal, além de Michelle Bolsonaro. O que pode acontecer com esses indivíduos?
A investigação será capaz de atribuir a participação de cada um em eventual prática delitiva, eventualmente apontando concurso de pessoas para uma mesma prática delitiva.
Bolsonaro também vem sendo investigado em outros inquéritos. Como a senhora avalia a situação jurídica do presidente com todos esses casos? O caso das joias pode ser a 'cereja do bolo' para a culpabilização do presidente? Ou os inquéritos são distintos o bastante para não se confundirem?
Há uma série de inquéritos e ações eleitorais que buscam a responsabilização de Jair Bolsonaro. Como ex-presidente, ele não goza de nenhuma imunidade constitucional.
Pelas informações divulgadas até o momento, não há confusão ou sobreposição de investigações, sendo apurados fatos distintos em cada um deles.
O que impressiona é a quantidade e a variedade de atos ilícitos que vêm à tona nas investigações, sobretudo agora que não há mais um filtro feito pela Procuradoria-Geral da República (PGR) em razão da ausência da prerrogativa de foro por função, já que é ex-presidente.
O procurador-geral da República, Augusto Aras, se notabilizou por arquivamentos de possíveis crimes cometidos por Bolsonaro e sua família durante os anos de governo do ex-presidente. Além disso, Bolsonaro teria feito o uso de instituições, como a Polícia Federal, indicando pessoas de seu círculo pessoal, em cargos de chefia, para se livrar de eventuais inquéritos. O quanto essas instituições sofreram durante o governo anterior? Podemos dizer que, com a saída do presidente, elas estão novamente 'livres' para investigá-lo, ou há algum tipo direcionamento político ainda, seja tanto favorável ou contrário a Jair Bolsonaro?
Parece-me mais adequado falar em sofrimento de povos indígenas e de outros grupos vulneráveis que foram deliberadamente atacados no governo Bolsonaro, em ações que ficaram impunes porque as instituições de investigação e responsabilização não foram capazes de agir.
Há um diagnóstico que mostra a retração da PGR enquanto instância de controle dos atos de Jair Bolsonaro, enquanto presidente da República.
Com a mudança de governo, é hora de promover reformas nas instituições que se mostraram falhas na contenção dos abusos excessos do Executivo, como diminuir a concentração de poderes no PGR e no Advocacia-Geral da União (AGU).