Do ponto de vista político, há enormes diferenças entre a Venezuela e o Chile, ou entre Bolívia e Brasil. Contudo são visíveis pontos em comum no tocante à arrogância do poder e às causas dos protestos do passado recente, em parte violentos.
Na América Latina, praticamente não existe um esforço autêntico e, acima de tudo, duradouro para alcançar equilíbrio social. Observa-se, antes, uma tendência ou à distribuição socialista, ou à política de consolidação neoliberal, só levando em conta a própria clientela e castigando ou, no mínimo, desprezando o adversário político.
Nem mesmo o Chile – o país que estava menos politicamente polarizado, mais acostumado ao consenso e que ia melhor economicamente – conseguiu alcançar uma política de equilíbrio social. Os fossos que lá se manifestaram não separam as facções políticas, mas sim os que tudo têm dos que querem mais e não o obtêm.
Nos últimos anos, a pobreza absoluta diminuiu drasticamente no Chile – da mesma forma, aliás, que na Bolívia e no Brasil. Porém a nova classe média também quer chances de ascensão, participação real, um futuro melhor para seus filhos e, acima de tudo, não voltar a cair na pobreza. Não ter reconhecido ou compreendido essas necessidades atesta uma assustadora indiferença por parte dos chilenos de posses.
A Bolívia e a Venezuela – mas também o Brasil dos tempos do PT – se ativeram a uma política da pura distribuição de renda, sem investir de forma séria ou duradoura em educação, infraestrutura ou sistemas solidários de seguridade. Enquanto os preços das matérias-primas estivessem bem, o Estado podia distribuir generosas subvenções entre as camadas mais pobres.
Entretanto tais benemerências permanecem sendo esmolas, se não há um compromisso social recíproco ancorado na lei – na forma, por exemplo, de um contrato entre as gerações num seguro-aposentadoria que funcione. Não houve a respeito um diálogo político, incluindo necessariamente as classes abastadas e seus representantes políticos. Em vez disso, a oposição foi excluída, a distribuição das benemerências foi abusada como meio de preservar poder. O resultado é como se vê: a Venezuela é uma ditadura e, seguindo rotas diferentes, a Bolívia e o Brasil vão na mesma direção.
A Argentina oscila há décadas entre os extremos, sem que jamais se chegasse a um consenso real entre os diferentes grupos da sociedade. A única constante parece ser a total falta de disposição de confiar ou sequer investir no próprio país. Até hoje, os argentinos que têm dinheiro preferem investi-lo antes em dólares do que na própria moeda, não importa quem esteja no governo.
Solidariedade com todos os concidadãos, independente da classe social; solidariedade até com o Estado, ou pelo menos com o país em que, afinal, se vive junto? Pagar impostos e tarifas sociais para o bem comum? Nem pensar! O lema é pegar tudo o que se consiga, em todas as camadas sociais, quase por toda parte.
A tributação é, em parte, pequena demais, o número dos contribuintes também, e a sonegação de impostos atravessa todos os setores da sociedade: não é acaso o setor informal ser tão grande na América Latina. Por conseguinte, o Estado se financia através dos impostos sobre o consumo, o que, por sua vez, pesa sobre a população mais pobre. O Uruguai é talvez a única nação latino-americana que conseguiu alguma forma de equilíbrio na legislação tributária, embora também lá o consenso a esse respeito esteja se esfacelando.
As causas para a desconfiança e a atitude de recusa perante a comunidade são numerosas, indo desde os efeitos persistentes do colonialismo, com sua exploração e racismo; passando pelo processamento desigual – e, por exemplo no Chile, altamente insuficiente – das ditaduras, ou das guerras civis, como na Colômbia ou no Peru; até a atual polarização entre as diferentes camadas sociais e agrupamentos políticos, instigada pelas redes "sociais" –sem esquecer a corrupção onipresente.
Acrescente-se que, devido à vivência da ditadura, muitas vezes a reeleição dos políticos não está prevista, ou só é possível uma vez. Isso, porém, limita seriamente a possibilidade de responsabilizar a política, ao mesmo tempo em que os sistemas ainda presidencialistas restringem o controle democrático.
A América Latina tem uma montanha de problemas atuais e passados a vencer, mas a esta altura deveria estar claro que a coisa não funcionará sem esforços conjuntos, sem consenso social. Nesse contexto, cabe reforçar algumas verdades óbvias:
Não, ninguém tem direito a mais privilégios do que outros, devido a sua origem. Sim, quem trabalha mais e tem mais responsabilidade também deve ganhar mais, contanto que pague mais impostos, dentro do aceitável.
Sim, todos têm direito a participação e a continuar se desenvolvendo. Não, isso não se alcança sem esforço e só através da redistribuição. O bolo acaba logo se ninguém mexe a massa, por maiores ou menores que sejam as fatias.
Um Estado que não impõe e não arrecada os devidos impostos, fracassou. Quem não quer pagar seus impostos não é cidadão.
Sem concessões recíprocas não há solução. Violência contra pessoas ou coisas – seja repressão estatal, seja vandalismo sem consideração pela vida humana – geram reação violenta.
Diálogo e consenso, moderação e meio-termo podem soar maçantes, mas faria bem à América Latina ter um tanto mais disso.
Uta Thofern é chefe do Departamento América Latina da DW
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