Há alguns anos a Alemanha tem os seus "maldosos cidadãos irados". O Pegida (sigla em alemão para "Patriotas europeus contra a islamização do Ocidente") e, sobretudo, o partido Alternativa para a Alemanha (AfD) articulam essa parcialmente indomada ira em relação à política de Berlim, com ênfase na questão dos refugiados.
Até a vitória eleitoral de Donald Trump nos Estados Unidos, a política e a maioria da opinião pública desabonavam moralmente esses cidadãos. Agora, muitos se dão conta de que nem todos os que se colocam ideologicamente à direita do centro são racistas ou extremistas de direita.
Os cidadãos irados são o resultado provisório de um grau máximo de estranhamento entre a elite governante e certos setores da população. Os partidos estabelecidos praticamente não lhes dão atenção – portanto também não os representam.
E quando começou o afluxo, em parte descontrolado, de cerca de 1 milhão de refugiados para dentro do país, isso provocou medo justamente entre aqueles que já vivem em condições economicamente precárias: os desempregados, os trabalhadores dos setores mal pagos e as famílias que vivem de salários baixos.
Diante desse pano de fundo, as verbas disponibilizadas para receber os refugiados podem ter sido necessárias, do ponto de vista humanitário, mas suas consequências políticas foram devastadoras.
Fato é que o papel do Estado como patriarca provedor está comprometido. Numa época em que a política leva anos para introduzir um salário mínimo, em que as expectativas de aposentadoria despencam, a generosa acolhida dos migrantes é um tema explosivo entre grande parte da população.
Na Alemanha se percebe há anos um ressentimento contra Berlim como "oásis de consenso do bem-estar", que denuncia como homofóbico todo aquele que não seja a favor do casamento gay. Em especial a imprensa mainstream postula, de forma monótona e unilateral, a melhor forma de pensar positivo. Coisa que acaba sendo irritante, de tão obviamente pedagógica.
Um fenômeno semelhante ajudou a decidir a recente eleição nos EUA: muitos dos eleitores de Trump do interior do país, no Sul e no Meio-Oeste, estavam fartos de ser difamados como caipiras pelas elites das costas Leste e Oeste.
Nada demonstra isso melhor do que o comprometimento com a sociedade multicultural, que há muito integra o inventário de fé do politicamente correto. Esse sentimento não cresceu de baixo para cima, e sim foi ditado a partir do alto, como algo moralmente superior, sobretudo pelos detentores de título acadêmico, os metropolitanos, liberais de esquerda no sentido amplo do termo. Aqueles de cujo sentimento existencial faz parte jantar no restaurante indiano, comprar na loja de produtos naturais, separar o lixo e, em vez do pacote de férias em Maiorca, ir jejuar em grupo na Floresta Negra.
Tudo isso e muito mais nada tem a ver com a realidade quotidiana dos excluídos da sociedade. Quem tem que se virar no interior do Leste alemão, sem emprego e sem padaria nem farmácia, com o médico mais próximo a 50 quilômetros de distância, não tem a menor paciência com a cultura de boas-vindas decretada pela chique Berlim multicultural. Mais ainda: esse cidadão se sente traído.
O politicamente correto – por assim dizer, a bússola comportamental de nossa sociedade – dá nos nervos de cada vez mais gente. Quem se opõe ao mainstream precisa de força interior, coisa que nem todos possuem.
Durante muito tempo não se podia contradizer a bem intencionada e moralmente honorável palavra de ordem "Vamos conseguir!" – pronunciada pela chanceler federal Angela Merkel no contexto da integração dos refugiados –, sem provocar uma shitstorm nas redes sociais. E quem então, de tanto ter que lutar pela subsistência, tampouco se interessa pela implementação da quota feminina no mercado de trabalho, esse já está mesmo no escanteio da política.
O fato é que, também na Alemanha, a sociedade está hoje profundamente dividida. Se continuarmos só nos ocupando dos cidadãos irados para lhes dar lições de moral, então acabaremos vendo o resultado – o mais tardar em 2017, ano de eleições gerais.