O presidente do Brasil aparentemente acredita que criticar Israel é algo que rende pontos em casa. Na grande arena internacional, porém, ele só deve poder contar com o aplauso de algumas lideranças do Sul Global.
"O que está acontecendo na Faixa de Gaza e com o povo palestino não existe em nenhum outro momento histórico. Aliás, existiu: quando Hitler resolveu matar os judeus." É essa frase, dita no domingo (18/02) a jornalistas às margens de um encontro da União Africana na capital etíope, Adis Abeba, que levou a uma crise diplomática entre Israel e Brasil.
Poucos assuntos dividem opiniões globalmente e há tanto tempo quanto a questão da Palestina. Quem tem o direito de viver no território do antigo Mandato Britânico da Palestina, onde hoje estão o Estado de Israel e os territórios palestinos? E uma solução de dois Estados ainda é possível? Décadas de esforços da diplomacia global não deram conta de resolver essas questões e apaziguar a situação explosiva.
É legítimo questionar se a reação do governo israelense ao massacre do Hamas de 7 de outubro é adequada e se a caçada das forças israelenses aos terroristas do Hamas atenta contra seu dever de proteger civis. Muitos israelenses também criticam a política do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu e a forma como o Exército israelense age.
Numa declaração provavelmente preparada pelo seu Ministério das Relações Exteriores, Lula condenou tanto o ataque terrorista do Hamas quanto a medida da reação israelense. Exigir uma solução de dois Estados, como ele o fez, também é uma posição legítima do governo brasileiro.
Mas com Lula os problemas começam sempre quando ele deixa as declarações oficiais de lado e age impulsivamente, achando que precisa anunciar sua opinião. Seu ego quer ser ouvido, e lhe diz todas as vezes que ele é mais sabido que todos os doutores diplomados e diplomatas. E é aí que surgem declarações como a que comparou Gaza ao Holocausto.
Naquele momento Lula deixou a arena internacional da diplomacia em Adis Abeba para caminhar em direção às profundezas da campanha eleitoral brasileira, da qual sairão, em outubro, os novos prefeitos e vereadores dos mais de 5 mil municípios do país. Será que ele espera ganhar votos atacando Israel?
Chamar opositores políticos de "fascista" ou "genocida" é algo que há muito tempo faz parte do repertório normal dele e do discurso de esquerda no Brasil, assim como a mania da direita de desprezar qualquer crítico como "comunista". Ainda que Lula sempre diga querer acabar com a divisão da sociedade brasileira entre "lulistas" e "bolsonaristas", ele continuamente alimenta essa polêmica.
Mas a terrível comparação com o Holocausto não teria sido possível sem a premissa de que Israel, da perspectiva brasileira, pertence ao mesmo lado que Jair Bolsonaro. Evangélicos brasileiros se veem próximos do povo judeu e de Israel, o que explica por que sempre há bandeiras israelenses em eventos do campo bolsonarista. Com isso, Israel, e com frequência também os judeus (que obviamente não representam o Estado de Israel), tornam-se automaticamente suspeitos de pertencerem à extrema direita global.
O PT se vê como parte da tal "resistência" do Sul Global contra uma suposta opressão do Norte Global – leia-se: das nações brancas e industrializadas, com suas heranças coloniais. Isso torna mais simples a divisão do mundo entre bem e mal e explica por que ditaduras como as de Venezuela, Cuba e Nicarágua não são criticadas e os crimes de guerra de Putin na Ucrânia, bem como as violações de direitos humanos contra opositores russos, são ignorados.
Também a brutal opressão de meninas e mulheres no Irã, no Afeganistão e em outros países não é abordada, já que esses países são considerados parte do Sul Global ou até mesmo, no caso do Irã, pertencem à agora ampliada "comunidade do Brics". Portanto, é provável que a comparação com o Holocausto renda a Lula aplausos no Sul Global e simpatizantes. No resto do mundo, porém, as pessoas esfregam os olhos com incredulidade.
Talvez o Brasil continental, autocentrado e auto-suficiente – diga-se: focado em si mesmo – esteja apenas longe demais – geográfica, cultural e emocionalmente – de todas essas crises para que se possa esperar de Lula que tenha uma visão mais diferenciada. Com suas declarações estranhas como a de que a Ucrânia tem sua parcela de culpa pela guerra, o ex-líder sindical torpedeia a própria ambição de ser uma voz de peso no mundo. O Brasil preside o G20 este ano, e também almejaum assento permanente no Conselho de Segurança da ONU.
Pode-se ter a opinião que se tiver sobre Netanyahu. Numa coisa, porém, ele está certo: a comparação de Lula com o Holocausto ultrapassou uma linha vermelha. Ele desonra a memória dos mais de 6 milhões de judeus mortos pelos nazistas e ataca os judeus em todo o mundo, difamando-os coletivamente por causa da política de Netanyahu em Gaza.
Ademais, a declaração de Lula é simplesmente falsa do ponto de vista histórico. A história está repleta de genocídios cruéis. Lula deveria deixar de lado seu ego e estudar história. Ou simplesmente se ater aos pronunciamentos de seus diplomatas – eles são conhecidos por acertarem o tom.
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Thomas Milz saiu da casa de seus pais protestantes há quase 20 anos e se mudou para o país mais católico do mundo. Tem mestrado em Ciências Políticas e História da América Latina e, há 15 anos, trabalha como jornalista e fotógrafo para veículos como a agência de notícias KNA e o jornal Neue Zürcher Zeitung. É pai de uma menina nascida em 2012 em Salvador. Depois de uma década em São Paulo, mora no Rio de Janeiro há quatro anos.
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