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Onde a esquerda está no poder na América Latina

31 de outubro de 2022

Eleição de Lula se soma a uma série de vitórias progressistas na região. Governos têm menos semelhanças entre si e enfrentam contexto global mais desfavorável do que na "onda rosa" da virada do século.

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Apoiadores de Lula no Rio de Janeiro, na noite do segundo turno de 2022
Apoiadores de Lula no Rio de Janeiro, na noite do segundo turnoFoto: Mauro Pimentel/AFP

A vitória do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva neste domingo (30/10) é a mais recente de uma série de eleições presidenciais com resultado positivo para a esquerda na América Latina, que traz à tona lembranças da onda rosa que atingiu a região há duas décadas – mas há diferenças cruciais entre esses dois momentos e o contexto atual é mais fragmentado e desafiador, segundo especialistas ouvidos pela DW.

No ano passado, Pedro Castillovenceu no Peru e Gabriel Boric, no Chile. Neste ano, Gustavo Petro também tornou-se o primeiro presidente de esquerda da história da Colômbia.

Somente Uruguai, Paraguai, Equador e Guatemala são comandados hoje por líderes de direita na região. Entre os países liderados pela esquerda, vale lembrar que há três governos autoritários ou ditatoriais: Nicarágua, Venezuela e Cuba.

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A preocupação em aproveitar essa onda de esquerda para fortalecer pontes com os países da América Latina foi mencionada por Lula nos últimos dias da sua campanha. Em artigo publicado neste domingo no site Poder360, ele afirma que fortalecerá o Mercosul e "relançará" a integração regional. Em seu último ato de campanha, uma carreta na Avenida Paulista no sábado, ele estava acompanhado do ex-presidente uruguaio José Mujica, um símbolo para a esquerda na região.

Os desafios para os presidentes progressistas na América Latina conseguirem entregar resultados aos seus eleitores e coordenarem iniciativas conjuntamente, porém, são muito diversos dos da virada do século. Entenda algumas das diferenças:

Esquerda mais heterogênea

Os partidos que protagonizaram a "onda rosa" há vinte anos tinham uma identidade maior entre si do que os de hoje, afirma Pedro Brites, professor da Escola de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas.

Aqueles presidentes haviam sido eleitos após governos de orientação neoliberal terem liderado os países da América Latina na década de 1990, e tinham como elemento propulsor de suas campanhas a crítica ao modelo de globalização orientado pelo chamado Consenso de Washington.

Agora, embora ainda haja algumas perspectivas similares entre os presidentes de perfil progressista, "os contextos domésticos me parecem mais definidores do que um processo regional", diz.

Ele cita o próprio Brasil como um exemplo, onde a vitória de Lula foi "muito mais uma resposta às dificuldades domésticas" e a um movimento amplo de defesa da democracia do que um reflexo do cenário regional latino-americano.

Mapa político da América Latna
Este será o cenário quando Lula assumir a Presidência em 2023

Na Colômbia, houve a particularidade da chegada inédita da esquerda ao poder após o sucesso do processo de paz, e no Peru um processo "muito característico" que teve como um dos elementos o fator identitário em função do eleito ter origem camponesa.

Brites pontua também que, na virada do século, as forças de esquerda tinham como identidade principal sua ligação com o movimento dos trabalhadores e a crítica à relação entre capital e trabalho, enquanto agora outras pautas se ressaltam, como a defesa do meio ambiente e os interesses dos povos originários.

Devido à heterogeneidade entre os processos de cada país, Brites prefere não chamar o processo atual de nova onda rosa. A mesma avaliação é feita por Alexandre Fuccile, professor de relações internacionais da Universidade Estadual de São Paulo. Para ele, trata-se de um fenômeno "substancialmente diferente" do ocorrido na virada do século.

Ele acrescenta que, como se tratam de países presidencialistas, a correlação de forças entre Executivo e Legislativo de cada país acaba influenciando a linha dos presidentes. "A negociação com o Congresso é fundamental para definir se esses governos serão mais vermelhos ou de tom mais rosáceo", diz.

Refluxo da globalização

O cenário global também mudou bastante. Há vinte anos, o mundo vivia um otimismo com a globalização. A China havia sido admitida na Organização Mundial do Comércio (OMC) em dezembro de 2001, e sua forte demanda por matérias-primas e alimentos elevou o preço das commodities e beneficiou países da América Latina, com reflexos na qualidade de vida de seus cidadãos.

As instituições internacionais também viviam um bom momento, diz Brites, o que levou os países da América Latina a pensarem sua política externa a partir da premissa de que construir uma maior integração regional – como com a criação da Unasul (União das Nações Sul-Americanas) em 2008 – daria a eles mais espaço e capacidade de atuação no plano internacional.

"Hoje esse contexto é muito mais adverso, porque o próprio multilateralismo está em crise", afirma Brites. Até os Estados Unidos, fiadores dessa ordem mundial, desvalorizaram a atuação da OMC, da Organização das Nações Unidas e da Organização Mundial de Saúde durante o governo de Donald Trump.

Para piorar, há um cenário mais conflituoso entre as grandes potências, como a guerra tecnológica entre Estados Unidos e China e a invasão da Ucrânia pela Rússia, que colocou Moscou em choque com o Ocidente. Há ainda um crescente questionamento em países importantes sobre os benefícios da integração global de suas cadeias de valor. "Para os países que não são grandes potências, diminuiu a capacidade de barganha e atuação no plano internacional", diz Brites.

"Talvez a própria região [da América Latina] seja uma resposta para isso, talvez construir laços regionais seja uma alternativa. Mas isso não se faz de uma hora para outra, e enfrenta desafios como a desconfiança da população", afirma.

Menor coesão social

Outro aspecto que diferencia esses dois momentos é uma maior polarização das sociedades no momento atual, com eleições vencidas por margens muito estreitas e alternâncias mais rápidas de poder.

"As clivagens sociais estão mais evidentes, não houve um processo de criação de consensos e um maior alinhamento em torno de um projeto de sociedade", diz Brites.

Mujica e Lula de perfil, olhando para a frente
Mujica, ex-presidente do Uruguai e símbolo da esquerda latino-americana, participa de evento da campanha de Lula em 29 de outubroFoto: Nelson Almeida/AFP

No Brasil, Lula venceu com 50,8% dos votos válidos. No Peru, Castillo teve 50,12% dos votos válidos, e na Colômbia, Petro recebeu 51,6% dos votos válidos. Boric teve uma margem um pouco maior no Chile, com 55,87% dos votos válidos, mas sofreu uma derrota significativa menos de um ano depois no referendo no qual 78,28% da população rejeitou a proposta de nova Constituição.

"[Na onda rosa], esses governos conseguiram se estabelecer por algum tempo. Atualmente tem sido mais difícil mediar e conseguir construir projetos ambiciosos, seja do ponto de vista doméstico como internacional", diz Brites.

Pandemia ampliou desigualdades

Fuccile também aponta que os governos progressistas eleitos recentemente herdaram uma situação de exclusão social ampliada pela pandemia de covid-19, que "atingiu desigualmente os desiguais".

Ele chama atenção para a perda educacional enfrentada pelos alunos de escolas públicas nos países latino-americanos, que em geral responderam de forma "muito tímida" ao fechamento das escolas e deixaram "muitas sequelas" no desenvolvimento futuro dessa geração.

Fuccile lembra ainda que o atual desafio de promover crescimento econômico com inclusão social não poderá contar tanto com o superciclo de commodities que beneficiou a América Latina há vinte anos. Apesar de o preço das matérias-primas e de alimentos terem subido no mercado mundial neste ano, especialistas apontam que esse ciclo será menos intenso e duradouro do que o da virada do século.