As interferências de Bolsonaro para blindar sua família
16 de julho de 2024"Se puder dar um filé mignon ao meu filho, eu dou", declarou o então presidente Jair Bolsonaro em 19 de julho de 2019, ao se referir aos seus planos de indicar o filho Eduardo Bolsonaro para o cargo de embaixador do Brasil nos Estados Unidos.
Eduardo nunca virou embaixador, mas a frase se tornou simbólica da não diferenciação entre o público e o privado e do uso do poder em favor de interesses familiares por Jair Bolsonaro.
Nesta segunda-feira (15/07), um outro caso em que o então presidente usou o cargo para agir em favor da família, este envolvendo o filho senador, Flávio Bolsonaro (PL-RJ), retornou às manchetes.
O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), retirou o sigilo sobre uma gravação de áudio de uma reunião na qual o então presidente Bolsonaro, o ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) Augusto Heleno e o ex-diretor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) Alexandre Ramagem conversam sobre o uso ilegal da Abin para favorecer Flávio, no caso que ficou conhecido como Abin Paralela.
A reunião foi gravada por Ramagem, segundo ele mesmo confirmou pouco depois da divulgação do áudio, e ocorreu em agosto de 2020. Segundo a PF, a conversa aborda o uso ilegal da Abin para obter provas que pudessem anular as investigações por "rachadinha" no gabinete de Flávio quando ele era deputado estadual no Rio de Janeiro. Em 2021, a apuração foi anulada pela Justiça.
Durante a reunião, as advogadas de Flávio, Juliana Bierrenbach e Luciana Pires, discutiram formas de obter informações sobre a investigação envolvendo o senador na Receita Federal e no Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro). O então presidente se prontificou a conversar com os chefes da Receita Federal e do Serpro.
Em 22 de fevereiro de 2022, o jornal Folha de S. Paulo já havia divulgado documentos que mostram que, de outubro de 2020 a fevereiro de 2021, a Receita deslocou dois auditores-fiscais e três analistas tributários para apurar se servidores da Receita no Rio de Janeiro haviam vasculhado de forma ilegal os dados de Flávio e de familiares e, a partir daí, repassado informações ao Coaf, órgão responsável pelo relatório de inteligência enviado ao Ministério Público do Rio e que deu origem à investigação da "rachadinha".
Jair Renan
Além de Flávio, também outro filho do ex-presidente, Jair Renan Bolsonaro, é acusado de tráfico de influência no caso da chamada Abin Paralela. A Polícia Federal (PF) afirma que a estrutura da Agência Brasileira de Inteligência foi utilizada durante o governo do Bolsonaro para favorecer esses dois filhos do ex-presidente.
A acusação é de que agentes da Abin usaram ilegalmente a estrutura da agência para produzir informações que pudessem ser usadas como provas a favor de Flávio e Jair Renan e para interferir em investigações da Polícia Federal que tinham os dois como alvo.
A ordem para isso teria sido dada por Ramagem, então diretor-geral da Abin, mas a origem dessa ação seria um pedido do Gabinete de Segurança Institucional, comandado à época pelo general Augusto Heleno.
De acordo com a PF, um policial federal que atuava na agência foi designado para espionar Allan Lucena, ex-sócio de Jair Renan numa empresa de eventos. Outro investigado é o empresário Luís Felipe Belmonte, que pagou uma reforma no escritório de Jair Renan.
O caso da Abin Paralela não é a única suspeita de tráfico de influência envolvendo Jair Renan. Uma outra investigação foi aberta pelo Ministério Público Federal em março de 2021 porque a empresa de Jair Renan, a Bolsonaro Jr. Eventos e Mídia, teve sua festa de inauguração registrada gratuitamente em foto e vídeo pela produtora de audiovisuais Astronauta Filmes, que tem contratos com o governo federal.
O MPF também investigou Jair Renan numa outra suspeita de tráfico de influência: ele foi acusado de ter ajudado uma empresa, a Gramazini Granitos e Mármores (que patrocinou a Bolsonaro Jr. Eventos e Mídia) a conseguir uma reunião com o então ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, para apresentar um projeto de moradias populares.
O próprio Jair Renan participou dessa reunião, que ocorreu em 13 de novembro de 2020 e que foi agendada pelo então assessor especial da Presidência Joel Fonseca. Segundo a revista Veja, Jair Renan solicitou a audiência ao gabinete da Presidência da República.
A Gramazini e uma outra empresa, o grupo WK, apoiaram a iniciativa empresarial de Jair Renan e tiveram suas logomarcas impressas na decoração da parede de entrada do escritório da Bolsonaro Jr. Eventos e Mídia, num camarote no estádio Mané Garrincha, em Brasília.
Essas duas empresas chegaram a doar um carro elétrico avaliado em R$ 90 mil a um projeto parceiro da empresa de Jair Renan, ao projeto MOB, de propriedade do ex-personal trainer de Jair Renan, Allan Gustavo Lucena do Norte.
Jair Renan negou as acusações envolvendo a Gramazini e o grupo WK numa entrevista ao SBT em abril de 2022. Ele se disse revoltado e que estavam tentando incriminá-lo em algo que ele não fez. "Eu não marquei nenhuma reunião com o governo. Eu nunca pedi para ir na reunião. Eu fui convidado. Eu fui porque eu conhecia o pessoal. Entrei mudo e sai calado", disse.
Em agosto de 2022, a Polícia Federal encerrou a investigação do caso sem indiciar ninguém. A PF afirmou não ter encontrado crimes na atuação de Jair Renan.
Carlos Bolsonaro
Em abril de 2020, a Polícia Federal identificou o vereador na câmara municipal do Rio de Janeiro Carlos Bolsonaro, o segundo filho do ex-presidente, como sendo o articulador de um esquema de disseminação de fake news.
Carlos é suspeito de ter coordenado, durante o governo do pai, um "gabinete do ódio", uma alegada milícia digital responsável por manchar a reputação de opositores nas redes sociais e divulgar informações falsas.
Ciente de que as investigações da PF haviam chegado ao seu filho, Bolsonaro exonerou o então diretor da PF, Maurício Valeixo, que, por sua vez, era uma pessoa da confiança do então ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro. Foi essa ação de Bolsonaro que resultou na saída de Moro do governo e no rompimento do ex-juiz com o então presidente.
Moro criticou duramente Bolsonaro, que acusou de interferir por motivos políticos no trabalho da Polícia Federal. Moro disse que Bolsonaro queria no comando da PF alguém para quem pudesse ligar para pedir informações sobre investigações e que o então presidente da República estava preocupado com investigações em andamento. "Não é o papel da Polícia Federal se prestar a esse tipo de função", afirmou Moro, ao tornar pública sua renúncia.
"Havia interesse em trocar superintendentes também. Novamente o do Rio de Janeiro, também o de Pernambuco, sem que me fosse apresentada uma causa, uma razão para que essas trocas fossem aceitáveis. Eu falei para o presidente que isso seria uma interferência política e ele disse que seria mesmo", disse Moro.
Em janeiro de 2022, já pré-candidato à Presidência, Moro revelou outro caso: ele disse que Bolsonaro havia transferido, em 2019, o Coaf do Ministério da Justiça para o da Economia para proteger os filhos nas investigações sobre "rachadinhas".
As investigações referentes ao "gabinete do ódio" continuam. No dia 7 de julho, a Polícia Federal prendeu preventivamente quatro pessoas e cumpriu mandados de busca e apreensão por ordem do STF em Brasília, Curitiba, Juiz de Fora, Salvador e São Paulo.
A Polícia Federal afirmou que "as investigações revelaram que membros dos três poderes e jornalistas foram alvos de ações do grupo, incluindo a criação de perfis falsos e a divulgação de informações sabidamente falsas".
Michelle Bolsonaro
O então presidente Jair Bolsonaro também é acusado de pressionar, por meio de assessores, pela liberação de joias presenteadas pelo governo da Arábia Saudita e que foram apreendidas pela Receita Federal no aeroporto de Guarulhos. O caso foi exposto pelo jornal O Estado de S. Paulo em 3 de março de 2023.
De acordo com a reportagem original de O Estado de S.Paulo, as joias foram apreendidas quando uma comitiva do governo Bolsonaro retornava ao Brasil após uma viagem oficial à Arábia Saudita, em outubro de 2021. As peças estariam na mochila de um militar que era assessor do então ministro de Minas e Energia, Bento Alburquerque.
Os agentes encontraram um par de brincos, um anel, um colar e um relógio com diamantes. Os objetos foram apreendidos. O militar então informou o ocorrido ao ministro Bento Alburquerque, que tentou liberar as peças alegando se tratar de um presente para a então primeira-dama, Michelle Bolsonaro. A Receita, porém, manteve a apreensão.
Segundo a reportagem, o governo Bolsonaro fez várias tentativas de recuperar as joias, mobilizando os ministérios da Economia, de Minas e Energia e das Relações Exteriores. Segundo o jornal Folha de S. Paulo, em dezembro de 2022, o próprio Bolsonaro teria conversado por telefone com o então chefe da Receita Federal, Julio Cesar Vieira Gomes, sobre a liberação das joias. Gomes teria pressionado os servidores de Guarulhos para liberarem a entrega das peças ao ex-presidente.