Não apenas celulóide
15 de fevereiro de 2004Angelopoulos é o mestre das tomadas longas, das seqüências que cruzam o tempo e de um aguardar eterno do retorno do outro. Tricotando em cada filme a espera de uma Penélope por um Ulisses que nunca volta, o diretor tem seu olhar voltado para o exílio interno. Sem crer na existência de passado, presente e futuro como categorias distintas, seus filmes transitam pela história, tomando a mitologia grega como ponto de partida. Seus cenários – água, névoa, neve, chuva – refletem o estado de ser de seus personagens, “negociantes da própria identidade”. Figuras que não podem ser vistas como indivíduos, mas como contornos de um tempo. Ou de uma época.
Seu último filme, Trilogia, que concorre ao Urso de Ouro no Festival Internacional de Cinema de Berlim, é o primeiro de uma série de três longas que pretendem reconstruir a história grega através do percurso de uma mulher, sintomaticamente chamada de Eleni. Presentes estão, como sempre em Angelopoulos, a metáfora do pai ausente, a viagem, o exílio e a espera de um retorno que nunca acontece. Histórias individuais confundindo-se com a História.
À sombra de Homero, Angelopoulos continua a fazer jus ao que disse em uma entrevista concedida há cinco anos atrás, quando divulgava seu penúltimo trabalho: “Filmes que valorizam o espectador são recheados de questões, a maioria delas sem resposta. O verdadeiro desenrolar de um filme está no encontro de dois olhares: o do diretor e o do espectador. Sem esse encontro, o filme não pode existir, é apenas celulóide”.
Em entrevista à DW-WORLD, Angelopoulos fala do porquê da escolha de uma narrativa linear em Trilogia, discorre sobre o uso da cor em seus filmes e revela detalhes de sua cooperação com o roteirista Tonino Guerra.
Por que o senhor retoma em Trilogia uma narrativa linear, em oposição a seus últimos filmes?
Já usei narrações lineares em filmes anteriores. Tudo depende do tema, do que está sendo tratado. Quando comecei a escrever este roteiro e ainda tinha três filmes em um só, não havia uma narrativa linear, mas estava tudo muito longo, eram seis horas. Assim não teria tido como transformar o material em um filme. Então optei pelas três horas. Nessa nova estrutura, há uma narrativa linear, mas isso vale apenas para o primeiro filme da Trilogia. É possível que o segundo não seja linear de jeito nenhum.
Por que a chuva e a névoa são uma constante em seus filmes?
É uma questão de cor. Em meus filmes anteriores, tenho três homens andando de bicicleta, usando capas de chuva amarelas. Me perguntaram por que essas capas são amarelas, o que isso significa. Respondi que é simplesmente uma cor. O racionalismo ocidental tenta dar nomes a muitas coisas, o que não faz sentido.
Quando seu personagem principal se despede, há uma blusa de lã que se desenrola como um fio de Ariadne, em uma das cenas de despedida mais bonitas de toda a história do cinema...
Em uma aldeia em Creta, de onde vem a família da minha mãe, quando as pessoas saíam, emigravam para os EUA, os que ficavam tinham o costume de dar algum objeto para aqueles que iam. Este costume da dar algo para os que se vão guardarem, para levarem em uma viagem, existe há muito. Freqüentemente trata-se de um objeto que tenha sido feito pelas mãos. Há de se lembrar também que Penélope, por exemplo, tricotava enquanto esperava por Ulisses. È uma tradição que vem da mais profunda história da humanidade, de muito, muito tempo atrás.
A última cena da Trilogia me lembrou um pouco a última cena de Sacrifício, de Tarkovsky. O senhor concorda com esse paralelo?
Não creio. Gosto muito de Tarkowsky, de Stalker acima de tudo. De Nostalgia gosto menos e de Sacrifício ainda menos, embora eles continuem sendo filmes de um mestre do cinema, mesmo se não tiverem sido tão bem sucedidos. Mesmo se a intenção original destes não tiver sido levada a cabo. É extremamente difícil para qualquer um produzir obras primas continuamente. Mas isso não importa. Nem mesmo Orson Welles, o diretor que mais admiro, conseguiu fazer obras primas todo o tempo.
Vendo seus filmes, tem-se a impressão de que o senhor lamenta a perda de toda uma arquitetura antiga grega, a perda de uma tradição...
Antes, as casas eram construídas pelas pessoas que iriam morar dentro delas. Há uma arquitetura popular ainda preservada no norte da Grécia, principalmente nas montanhas e nas ilhas. É uma arquitetura admirável, característica, pessoal. Eu não consigo entender a forma como as coisas vão hoje se desenvolvendo. A cidade onde nasci, por exemplo, não reconheço mais, nem mesmo o local onde era minha casa. Não reconheço mais nada lá. Neste sentido, acredito que predomina uma falta de personalidade na maneira como novas edificações vão surgindo no espaço urbano. Mesmo quando são projetadas por arquitetos célebres. Admiro o novo centro de Berlim, projetado por tais arquitetos, mas eu não poderia jamais viver aqui. Eu teria medo.
A guerra civil tem, na sua obra, um significado até mesmo mais contundente que a Primeira e a Segunda Guerra Mundiais. Por quê?
Assim como na Espanha, a guerra civil na Grécia foi uma das experiências mais terríveis pelas quais o país passou. Famílias foram divididas. As feridas deste período continuaram existindo por muitos e muitos anos. A minha própria família foi dividida em duas “metades”, entre esquerda e direita. E as conseqüências disso foram terríveis. Dessas experiências me lembro nitidamente, pois tinha nove anos. De um lado, uma facção da família, do outro, a outra. Guerra e morte dos dois lados. Todos esses sons da tragédia durante a guerra, os toques de recolher, os tiros. A imagem daquele período retorna continuamente à minha memória, como um pesadelo. Por isso, não posso evitar a sensibilidade que tenho em relação a esse período. Não se trata de um período histórico que sempre volta nos meus filmes, trata-se de um grito, como o grito na cena final de Trilogia.
A biografia da personagem principal de Trilogia é uma analogia a todas as catástrofes ocorridas no século 20?
O que aconteceu no Kosovo, na Bósnia, no Afeganistão, no Iraque, em diferentes partes do mundo, é a mesma tragédia. Todo lugar onde há vítimas, que não participaram da guerra. Tomando o exemplo do microcosmos Iraque: uma família lá, hoje, é dividida, em primeiro lugar, pela religião (entre muçulmanos sunitas e xiitas). Há depois aqueles que são pró-americanos e os que são contra. Todos os dias há mortos. A repetição da guerra e da tragédia está também profundamente ancorada na história européia. E quem é que disse que isso está acabando? O que é a História? É o que está no filme. É uma mulher, que passa por tudo isso: ela se apaixona, tem filhos, vai para a prisão, seu parceiro emigra para os EUA, ela fica, é presa porque ajuda alguém e acaba coletando os cadáveres de seus filhos, primeiro de um, depois do outro. O que mais ela pode fazer, a não ser gritar, como no fim do filme?
Descrevendo seu trabalho com o roteirista Tonino Guerra, o senhor já disse que às vezes há entre vocês um único encontro, em um único dia, para desenvolver um roteiro. Qual foi a participação dele neste último filme? De forma geral, como a assinatura de Tonino Guerra é reconhecível nos seus últimos filmes?
Quando nós nos encontramos, o comum é que eu fale e ele intervenha. Desta vez, nós nos vimos e eu voltei para a Grécia, pois escrevo todos os roteiros sozinho. Alguns dias depois, quando estava escrevendo, o telefone tocou: era o Tonino. Ele me disse: Theo, nós temos que colocar um frango em algum lugar. Respondi: não estou te entendendo muito bem! Um frango? Ele repetiu: Sim, um frango. Considerando que ele não estava falando sério, desliguei o telefone, continuei escrevendo e, dias mais tarde, cheguei a uma cena difícil. Não soube como começá-la. Precisava de um início não usual, estranho. Aí me lembrei do frango e o incluí ali. Parece engraçado, mas é seríssimo, importantíssimo. Em essência, a contribuição de Tonino para este novo filme está na idéia da terceira carta, que fala das origens do rio. Isso é o prólogo de um livro que Tonino escreveu sobre o meu trabalho, do qual me apropriei e coloquei no filme.