Você se lembra se em algum momento da sua vida você usou a expressão "500 mil" para alguma coisa. Quando foi que meio milhão fez algum sentido na sua vida? (Se é que um dia isso aconteceu).
Um número tão grande quanto abstrato...
500 mil. 500 vezes mil, 5 mil vezes 100, 50 mil vezes dez, 500 mil vezes um.
E aí, chegamos ao átomo da questão. Por 500 mil vezes, uma pessoa morreu. Um indivíduo, como eu e você. Um ser humano que tinha sua própria história, sua própria forma de estar no mundo, sua família, seus amores e dissabores.
Muitos dirão que pessoas morrem todos os dias, no mundo inteiro. E essa é a mais pura verdade. Na realidade, a morte é a única certeza que todos nós temos, e ainda que seja possível morrer de formas distintas – a depender da crença, da cor da pele e da situação sócio-econômica da pessoa em jogo –, é possível afirmar que na humanidade nada é mais democrático do que a morte, mesmo ela sendo tão plural.
No Brasil, 2020 foi o ano mais letal dos últimos tempos. Um pouco mais de 1,4 milhão de pessoas morreram, muitas delas de doenças já conhecidas, como as cardíacas, o câncer, as doenças respiratórias, o derrame cerebral, o diabetes.
Mas os números mostram que no ano de 2020 houve um crescimento de 8,6% nas mortes no Brasil. Percentual este que tem nome e sobrenome: covid-19. Quando ainda tínhamos um pouco menos de 200 mil mortos, a pandemia do novo coronavírus foi responsável não só por compor o ano de maior letalidade no Brasil, mas também por aumentar significativamente o percentual de mortes de um ano para outro.
Até então, a média do crescimento do número de mortes girava em torno de 1,8%. Esse percentual mais do que quadruplicou. Uma característica que deve se agravar neste ano, já que, entre janeiro e abril de 2021, a covid matou mais gente do que no ano anterior – que vale repetir, foi o de maior mortandade em terras brasileiras.
E na sua conta própria, a covid ceifou 500 mil vidas no Brasil. Uma história que ainda não acabou. E, o pior, que está longe de acabar. 500 mil vidas que foram interrompidas na decisão desesperada de ficar em casa; no vazio gelado das UTIs; no medo da solidão; no olhar exausto e repleto de compaixão de médicos e enfermeiros; no peito arfando, pedindo ar, pedindo sopro, pedindo vida. 500 mil mortes. 500 mil pessoas. Mas nem na pandemia, o morrer deixa de ser plural. O vírus é o mesmo, mas mata de formas diferentes.
O que torna esses 500 mil ainda mais dilacerantes é o fato de que, mesmo se tratando de uma pandemia, um percentual desse número não precisava existir. Muitos desses 500 mil deveriam ter sido vacinados; outros tantos poderiam não ter contraído o vírus, caso tivessem condições de ficar em casa, ou consciência da importância do isolamento social, do uso da máscara, da ineficácia de tratamentos precoces. E tais constatações fazem com que tenhamos que encarar os fatos: esses 500 mil são nossos.
Esse meio milhão de pessoas mortas pela covid-19 são espelho do que é o Brasil. Não só porque são brasileiros mortos. Mas porque são brasileiros que morreram de covid no Brasil, neste Brasil. Não estamos diante apenas de uma tragédia: estamos enfrentando nossa história e nossas escolhas da pior maneira possível. E, infelizmente, mantemos esse nosso "jeitinho apaziguador" de transformar o horror em estatística.
Porém, como a própria palavra diz, a pandemia é algo que afeta "todo o povo" – essa, inclusive, é a origem grega do termo. As 500 mil pessoas mortas deixaram saudade em quantos outros milhões de pessoas? Quantas mães sem filhos? Quantos filhos sem pais? Quantas irmandades se perderam? Quantos avós se foram? E o peso disso tudo? Como continuar vivendo e acreditando num país em que 500 mil pessoas morreram numa pandemia, de uma doença para qual já existe vacina eficaz e cientificamente comprovada? Como lidar com as 500 mil mortes sabendo que serão muitas mais, ao mesmo tempo que poderiam ser tantas menos?
Uma característica que marca a existência da espécie humana é o enterramento de seus mortos. O ato em si, e toda a liturgia que o acompanha, toda a memória que ele carrega da vida que foi, do ciclo que se completa. No Brasil, a pandemia nos roubou até isso: a dignidade, a humanidade de nossas mortes. Foram despedidas caladas, atravessadas e sobrepostas por mais e mais mortes. Precisamos chorá-las, precisamos carpi-las. Por um bom tempo.
500 mil vidas. 500 mil mortes. 500 mil covas, muitas delas rasas. Afinal, qual o tamanho do nosso buraco?
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Mestre e Doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017) e Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.