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"Nosso filme é um ato político de liberdade de expressão"

25 de outubro de 2021

Vetado pelo presidente Bolsonaro por conta da temática, "Transversais" conta a história de cinco transexuais e estreou na Mostra de São Paulo. Diretor diz que "censura” deixou-o com "mais gana e determinação”.

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Filmszene | Tranversais
Cena de "Transversais"Foto: Juno Braga/Transversais

"É um dinheiro jogado fora. Não tem cabimento fazer um filme com esse tema", disse o presidente Jair Bolsonaro em live divulgada em agosto de 2019. "Um chama Transversais. Olha o tema: ‘sonhos e realizações de cinco pessoas transgêneros que moram no Ceará. O filme é isso daqui, conseguimos abortar essa missão.”

Quando o presidente admitiu que havia garimpado na Agência Nacional do Cinema (Ancine) os "filmes que estavam já prontos” para a a captação de recursos e deixou claro que o órgão governamental vetaria aqueles que tivessem uma temática que ele, Bolsonaro, julgasse inadequada, o cineasta Émerson Maranhão precisou rever seu projeto.

Filmplakat | Tranversais
Foto: Juno Braga/Transversais

Originalmente, Transversais seria uma série de cinco episódios. A produção estava inscrita na categoria diversidade de gênero em um edital que havia sido aberto ainda na gestão Michel Temer. "Para nós, virou uma questão de justiça [realizar o trabalho]. Mais do que um documentário sobre cinco pessoas e suas relações com a transexualidade, Transversais é hoje um ato político de apropriação da liberdade de expressão”, afirma ele.

O plano foi adaptado e, graças a recursos oriundos da Lei Aldir Blanc, acabou finalizado em forma de filme longa-metragem. E fez sua estreia na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que acontece até o dia 3 de novembro na capital paulista. "O fato de termos sido censurados pelo governo federal de alguma maneira acabou influenciando para que a gente tivesse mais vontade de levar essa história para as telas.”

DW Brasil: De acordo com balanço anual da organização Trans Murder Monitoring, o Brasil ocupa a primeira posição no ranking mundial da transfobia, com 152 assassinatos de pessoas trans no último ano. Nesse contexto de ódio e perseguição, como avalia a importância de dar visibilidade a essas pessoas?

Émerson Maranhão:  Desde o começo do projeto, transversais tinha a intenção e talvez a pretensão de lançar um olhar para esse segmento da população que é tão invisibilizado e, na verdade, muito vítima da ignorância e do preconceito. Nossa intenção foi mostrar o quão normais são essas pessoas, o quão comuns elas são.

Geralmente os transgêneros são vistos como algo fora do comum. O desconhecido de alguma maneira sempre assusta. Entendemos que ao nos aproximarmos do desconhecido e ver que nada ou muito pouco eles diferem de nós, estamos contribuindo para combater esse tempo de tanto ódio e tanta ignorância.

Quando Bolsonaro criticou o seu projeto, de que maneira isso prejudicou seu trabalho? Você e sua equipe chegaram a ser perseguidos?

A gente foi perseguido, sim, de diversas maneiras. Maneira sutis e menos sutis. Tivemos de trancar nossas redes sociais, fomos vítimas de ataques virtuais, Allan [Deberton, produtor do filme] teve projetos, alguns na área do audiovisual, prejudicados por estar associado a ‘Transversais'.

Você se sentiu mais motivado a finalizar o filme?

De uma maneira geral, essa questão da censura… Porque não tem outro nome para o que o governo fez para a gente… Essa questão da censura nos fez ter mais gana e mais determinação para levar a história para as telas. Foram dois anos a partir de 2019 tentando tirar do papel, trabalhando na pré-produção, na captação de recursos e no roteiro, até conseguirmos tirar do papel.

Para nós, virou uma questão de justiça [realizar o trabalho]. Mais do que um documentário sobre cinco pessoas e suas relações com a transexualidade, Transversais é hoje um ato político de apropriação da liberdade de expressão. Quando lançamos Transversais, celebramos a liberdade de expressão, porque a censura é uma coisa que a gente achava que não ia correr mais risco de ter no país, mas censura à liberdade de expressão é o que estamos vivendo nesses últimos três.

Então, sim, o fato de termos sido censurados pelo governo federal de alguma maneira acabou influenciando para que a gente tivesse mais vontade de levar essa história para as telas. Quando o governo federal diz que essa história não pode ser contada, ele tenta silenciar uma parcela da população. Mas ao tentar silenciar uma parcela da população, ele quer silenciar a produção artística. E nós entendemos que não há negociação com a liberdade de expressão.

No fim das contas, como o projeto acabou sendo financiado?

As produções audiovisuais no Brasil são geralmente financiadas, em boa parte, com recursos públicos, tanto através de editais quanto através de financiamentos junto a Ancine Transversais inicialmente era uma série em cinco episódio que chegou à final de um edital das TVs públicas, lançado no último ano do governo [Michel] Temer em uma categoria de diversidade sexual e de gênero.

Então fomos surpreendidos com o presidente [Jair Bolsonaro, em agosto de 2019] anunciando que o projeto tinha sido aprovado e abortado. De lá para cá, tentamos algumas captações na iniciativa privada, mas isso é um processo lento, não é simples.

Por conta da pandemia, foi aprovada pelo Congresso brasileiro a Lei Aldir Blanc [de auxílio ao setor cultural], que destinava recursos para editais emergenciais a serem administrados por governos estaduais e municipais. Do recurso enviado ao estado do Ceará, que é onde o filme foi realizado, o governo [estadual] fez um edital para longa-metragens.

Tiramos o primeiro lugar na categoria documentário. Ironicamente, é um filme que foi censurado pelo governo Bolsonaro mas foi realizado com recursos públicos federais. Só que através da mediação do governo estadual [cearense]. ‘Transversais' ganha as telas por meio de financiamento de recursos federais.