"Na Europa há resistência a entender a discussão racial"
21 de outubro de 2022A filósofa e feminista Djamila Ribeiro participou nesta semana da Feira do Livro de Frankfurt, o maior evento do mercado editorial do mundo, para lançar a edição em alemão de seu livro Lugar de fala. A obra integra a coleção Feminismos Plurais, que foi organizada por Ribeiro e reúne títulos assinados por acadêmicos negros brasileiros.
O livro busca desmistificar o conceito de lugar de fala, mostrando que a sociedade é composta por diversas vivências específicas e, dessa forma, se faz necessário diferenciar os discursos de acordo com a posição social de onde se fala. Por isso Ribeiro acredita ser tão importante lançar o título em solo alemão.
"O debate na Alemanha em relação à questão racial precisa ser cada vez mais aprofundado", afirma a filósofa em entrevista à DW Brasil. "Existe uma resistência muito grande, eu diria que na Europa em geral, a entender a discussão racial, entender que isso faz parte de uma tradição crítica. É um olhar ainda muito eurocêntrico, que não compreende e não dá conta de compreender a realidade de vários lugares sociais."
Ribeiro acrescenta que os indivíduos têm "uma visão empobrecida quando acham que a sua visão de mundo é a visão do todo". "E quando a gente não se confronta com outras visões, acabamos vivendo num mundo muito restrito", reflete.
Descrita como "símbolo do movimento de mulheres negras no Brasil" pela revista alemã Der Spiegel, ela defende ainda a importância de se fazer políticas públicas descentralizadas para mulheres negras no Brasil. "Falta encarar esse problema das mulheres como algo estrutural. Nós somos maioria da população, e estamos sendo agredidas e assassinadas diariamente", afirma.
A edição alemã de Lugar de fala foi uma construção coletiva possibilitada por Jamila Adamou, Inajá Correia Wittkowski, Ana da Graça Correia Wittkowski e a editora Assemblage. O trabalho foi desenvolvido em conjunto com a Universidade de Mainz. A obra conta com o prefácio de Grada Kilomba, autora de Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano.
DW Brasil: Por que é importante divulgar o conceito de Lugar de fala para o público na Alemanha?
Djamila Ribeiro: Acho que é importante lançar o livro em alemão porque o debate na Alemanha em relação à questão racial precisa ser cada vez mais aprofundado. Tem todo um movimento "Afrodeutsch" muito importante aqui, mas, ao mesmo tempo, a gente tem uma imigração na Alemanha vivendo várias questões que ainda trazem muitos conflitos por conta dessa forma de entendimento de não se abrir para os saberes, para a compreensão dessas pessoas.
Existe uma resistência muito grande, eu diria que na Europa em geral, a entender a discussão racial, entender que isso faz parte de uma tradição crítica, que existem estudos sobre esse tema. É um olhar ainda muito eurocêntrico, que não compreende e não dá conta de compreender a realidade de vários lugares sociais. Por isso penso que é importante lançar Lugar de fala aqui. Porque estamos falando que existem lugares distintos que compõem essa sociedade e é importante termos ferramentas para poder compreendê-los.
Em um artigo recente para a revista alemã Der Spiegel, você escreveu que no Brasil existe uma "violência sistematicamente legitimada" contra as mulheres. Como você descreveria a violência contra a mulher, especialmente a mulher negra, no país, e como pará-la?
O Brasil é o quinto país do mundo em assassinato de mulheres, um país que tem um número altíssimo de violência sexual contra mulheres. Ao mesmo tempo que internacionalmente se tem essa ideia estereotipada de que o Brasil é um país de harmonia, também tem um olhar de ultrassexualização para as mulheres brasileiras. As pessoas não conhecem a realidade interna do país que, infelizmente, foi fundado no estupro colonial de mulheres negras. Essas mulheres eram estupradas para gerar mais mão de obra escravizada e depois se cria toda uma tentativa de romantizar esses estupros coloniais, dizendo que éramos todos mestiços, que o Brasil é um país que não dá para saber quem é quem. "Aqui no Brasil não existe apartheid ilegal", mas tem uma violência brutal contra a população negra. "Aqui no Brasil não há restrições tão diretas contra as mulheres, em relação às vestimentas", mas é um país onde as mulheres ainda ganham muito menos do que os homens e ainda são assassinadas de maneira eu diria até que epidêmica.
A gente tem um dispositivo legal, a lei Maria da Penha, de 2005, que é uma lei importante, mas se a gente não amplia essa lei para criar mais centros de apoio a essas mulheres, que esses centros sejam também nas periferias, temos que pensar políticas públicas descentralizadas, a gente se esquece que muitas mulheres não têm o dinheiro do transporte para procurar um centro que fica muitas vezes distante das casas delas. Falta encarar esse problema das mulheres como algo estrutural. Não é um problema específico. Nós somos maioria da população, estamos sendo agredidas e assassinadas diariamente. Então, cabe ao Estado criar ferramentas de enfrentamento à essa violência. E de criar oportunidades para as mulheres, para que possamos sair dessa situação na qual muitas vezes somos confinadas.
A descriminalização do aborto, por exemplo, é uma pauta urgente que hoje está sendo rifada a todo custo. Mais de 200 mil mulheres morrem todos os anos no Brasil pelo fato de o aborto ser crime no país. As mulheres vão fazer aborto. A questão é que quem pode pagar acaba fazendo de maneira mais segura, e quem não pode pagar faz em lugares não preparados para lidar com essas mulheres. Precisamos ser palco urgente de políticas públicas e não mais só sermos usadas nos jogos políticos.
As eleições deste ano registraram um crescimento na representação negra na política. Foram eleitos 525 candidatos que se autodeclaram pretos ou pardos, um aumento em relação a 2018. Mas a população brasileira é formada por 56,1% de pretos e pardos. Historicamente, que momento o movimento negro está vivendo e o que esse resultado do primeiro turno significa?
Desde o assassinato brutal de Marielle Franco, algo que nos chocou muito enquanto pessoas negras no Brasil, houve um fortalecimento [do movimento negro]. Na eleição seguinte ao assassinato de Marielle, já tinha aumentado o número de mulheres negras nas assembleias e nas casas legislativas. Isso impulsionou uma organização maior para que as pessoas negras estivessem de forma organizada dentro dos espaços institucionais. Claro que já existiram movimentos anteriores. Abdias Nascimento foi um grande pioneiro, mas agora a gente tem os movimentos pensando de maneira estratégica a importância de aumentar o número de pessoas negras na política. Porque a gente precisa estar dentro desses espaços para pautar os temas que são importantes para nós.
Claro que ainda falta muito. Mas se a gente for olhar, não tem como não considerar esse avanço. É muito positivo que isso aconteça, sobretudo no momento atual que o Brasil vive, de retrocessos, de um presidente que é totalmente contrário a essas pautas. Isso também mostra uma reação da população em relação a esses últimos quatro anos em que vivemos profundamente os absurdos de cortes de políticas públicas, de corte de verbas na educação.
Estima-se que mais de 6 milhões de mulheres negras sejam empregadas domésticas no Brasil. A lei que regulamenta a profissão foi aprovada somente em 2013, e ainda sob protestos. Até hoje muitos casos de trabalho análogo à escravidão vêm à tona, envolvendo sobretudo mulheres negras e até meninas. O que é preciso para mudar essa realidade e essa mentalidade na sociedade brasileira?
Muito boa a pergunta porque para além da realidade tem a mentalidade ainda colonial de que essas mulheres não merecem ter tratamentos dignos como qualquer outra trabalhadora. A PEC das domésticas simplesmente igualou o trabalho doméstico a qualquer outra profissão. O resquício colonial ainda faz com que a sociedade brasileira enxergue esse trabalho como menos importante ou um trabalho que não merece reconhecimento, quando na verdade ele é fundamental para a sociedade funcionar. Então, o dispositivo legal é fundamental, mas é importante que a gente trabalhe esses temas nas escolas de maneira transversal, é importante termos mais políticas públicas para que essas mulheres tenham direito a escolhas, para que suas filhas possam ter acesso à educação. Se a gente não cria esses espaços de oportunidades, os ciclos vão se repetindo. E o Brasil é um país que no pós-abolição não criou nenhum tipo de política de inclusão para a população negra.
Se Bolsonaro for reeleito, o que você acha que pode acontecer com as políticas raciais?
Primeiro, a gente espera que isso não aconteça. Muita esperança que isso não vai acontecer porque o Brasil não aguenta mais quatro anos de governo Bolsonaro. A precarização de vidas nesses quatro anos é algo gritante a olho nu. Mesmo que não se veja nenhuma pesquisa sobre isso, você sai às ruas e vê o número de pessoas em situação de rua, 33 milhões de pessoas passando fome, a falta de responsabilidade durante a pandemia.
O Brasil não aguenta, porque houve uma série de cortes na educação, na área da saúde, perseguição a jornalistas… É muito importante falar o quanto o Brasil ainda é um país muito perigoso para jornalistas, para ativistas de direitos humanos. [Como] o que aconteceu com Bruno Pereira e Dom Philipps na Amazônia: não temos uma resposta satisfatória à população sobre o assassinato brutal de duas pessoas que eram engajadas na luta dos povos indígenas. Se esse governo se perpetuasse, com certeza a gente teria um país ainda mais violento, um retrocesso gigante, e com as instituições cada vez mais enfraquecidas.
A diferença crucial para mim entre os governos Lula e Bolsonaro é que no governo Bolsonaro a gente ia ter que ficar lutando para enxugar gelo e impedir mais retrocessos. E no governo Lula, a gente consegue ter uma retomada democrática e fazer uma luta por direitos.
Aqui na Europa, assim como em muitos outros lugares do mundo, as brasileiras ainda são vistas como mulheres que são naturalmente sexy. As mulheres negras brasileiras mais ainda. Como mudar isso?
As mulheres já foram colocadas em propagandas do Ministério de Turismo: "Venham para o Brasil conhecer nossas mulheres". O próprio Estado brasileiro é responsável por essa visão ultrassexualizada das mulheres negras. Eu, muitas vezes, no Rio de Janeiro participando de eventos literários, estava em hotéis na zona Sul, os homens achavam que eu era prostituta por estar hospedada naquele hotel, ou as pessoas falavam comigo em inglês ou francês achando que eu era estrangeira. Eu não poderia ser uma mulher negra, brasileira, hospedada naquele hotel. Costumo dizer que como brasileira, sou estrangeira no meu próprio país.
O Brasil também não está acostumado a ver mulheres como eu nesses espaços. E fora do Brasil essa imagem continua sendo propagada. Cabe ao Estado brasileiro começar a trabalhar para refutar essa imagem, mas também cabe à Europa olhar para o Brasil por uma outra perspectiva. Porque é muito cômodo a Europa só olhar para o Brasil na perspectiva da violência, da falta, da sexualização das mulheres, quando a gente tem uma história de resistência enorme, uma série de intelectuais importantes, escritores, culturas riquíssimas. É um tanto ainda arrogante a gente achar que só existe um modo de fazer conhecimento, um modo de se expressar, um modo de ser humano. Então, acho que a Europa tem muito a aprender com o sul global ao olhar para o sul global a partir da perspectiva da potência e não somente sob essa perspectiva que foi vendida historicamente.
A Spiegel escreveu que você é "o símbolo do movimento de mulheres negras no Brasil" que "construiu uma carreira apesar de todas as adversidades". O que você poderia dizer para as meninas pretas que enfrentam tantas adversidades?
Eu diria que é importante a gente se engajar, a gente estar junto dos movimentos. E sobretudo estar em espaços que a gente consiga construir algo que mude a realidade das pessoas. Porque eu não me fiz sozinha. Eu sou fruto de políticas públicas, eu sou fruto de movimentos sociais, sou fruto de uma família consciente. Mas acho que precisamos nos fortalecer enquanto mulheres. Porque não é fácil ser mulher de qualquer etnia. A mulher negra tem ainda muito mais desafios, o quanto que a gente não é dona do nosso corpo, as pessoas não têm noção do que é ser mulher.
Isso de chegar nos espaços e as pessoas duvidarem da sua capacidade o tempo todo, de você ter que se provar, e o quanto isso nos custa mentalmente. Por isso é muito importante a gente trabalhar o nosso psicológico. Muitas mulheres ao longo da história adoeceram, enlouqueceram. Então a gente precisa muito trabalhar nossa dimensão psíquica. E como uma mulher do candomblé, a dimensão espiritual para mim é fundamental.
O que os alemães podem esperar do seu livro?
Eles vão conhecer muitas autoras que provavelmente nunca ouviram falar. Porque eu parto de autoras majoritariamente negras. Autoras latinas, panamenhas, caribenhas, indianas. Mulheres do sul do mundo. Primeiro para mostrar que não começa agora, tem toda uma tradição de mulheres que já estavam discutindo a importância de a gente pensar os lugares sociais. E o meu papel como uma mulher dessa geração que atingiu uma visibilidade é fazer visível também essas mulheres, porque muitas vezes a história não fez justiça a elas. Essas mulheres construíram esse caminho para que eu estivesse aqui hoje.
Então, o público alemão vai conhecer mulheres que nunca leu e talvez se incomode com o livro. E eu sempre falo isso. Está tudo bem se incomodar, acho que tem que se incomodar. Porque se a gente acha que as coisas estão boas, a gente não muda. Ninguém faz mudança nenhuma no conforto. E que esse incômodo seja algo que os impulsione a refletir para além de si mesmos, para além de uma visão fechada, que eles consigam se confrontar. Porque a vida é muito mais rica quando a gente conhece outros lugares sociais. A gente tem uma visão empobrecida quando acha que a nossa visão de mundo é a visão do todo. E quando a gente não se confronta com outras visões, a gente vive num mundo muito restrito. Então, o livro também é um convite para que eles conheçam outras possibilidades de mundo e de existência.