Meinhof é mãe ou patrimônio público?
19 de setembro de 2006Até que ponto personalidades da história recente podem ser transformadas em personagens literárias, sem comprometer pessoas ainda vivas ligadas a elas? Esse é o dilema que envolve, no momento, a dramaturga austríaca Elfriede Jelinek, Bettina Röhl, filha da ativista da Facção do Exército Vermelho (RAF) Ulrike Meinhof, e o Thalia Theater, de Hamburgo, que estréia em 28 de outubro próximo a peça Ulrike Maria Stuart.
"Jelinek distorce Meinhof como mãe em palco e, com isso, pessoas reais que ainda vivem, como eu e minha irmã. O que Jelinek veicula sobre a mãe Meinhof é histórica e factualmente uma grande bobagem, para expressar da forma mais positiva possível. Meinhof é encarada como patrimônio público e o mesmo se aplica a quem tinha a ver com ela ou pertencia à sua família", reclamou Röhl, em entrevista ao diário Hamburger Abendblatt, após ter assistido a um ensaio da montagem do diretor Nicolas Stemann.
Devolver às mulheres da RAF sua participação na história
Em seu mais recente drama, a Nobel de Literatura Jelinek tomou como referência a peça Maria Stuart, de Friedrich Schiller, decidindo-se até mesmo pela forma em verso. "O que me estimulou foi transferir os mecanismos de poder conhecidos e geralmente atribuídos aos homens para duas mulheres que, cada uma à sua moda, ultrapassam a escala real e não podem nem querem se enquadrar em lugar nenhum."
"Transferi esses mecanismos de poder para Ulrike Meinhof, como Maria, e Gudrun Ensslin, como Elisabeth, duas mulheres que fizeram história. Muito embora isso tenha sido apenas por um breve tempo que ainda vive hoje como folclore. Devolvi a essas duas mulheres sua participação na história, mesmo que esta participação tenha sido sombria, negativa e opressora", declarou Jelinek ao jornal News, anunciando ao mesmo tempo que não pretende escrever mais peças de teatro nos próximos anos.
Em torno do vazio que a esquerda deixou
Para a filha de Meinhof, a peça – além de violar seus direitos de personalidade – representa um apelo por uma nova RAF, a organização de extrema esquerda responsável por atentados e seqüestros sobretudo nas décadas de 70 e 80. O diretor Nicolas Stemann, por sua vez, explicou ao diário Tageszeitung que a nova peça de Jelinek "desconstrói a esquerda do pós-guerra e decompõe o feminismo, comunismo e terrorismo, ou seja, todos os movimentos libertários e utópicos dos últimos 40, 50 anos".
"Mas nessa peça sempre há momentos em que o presente vem à tona, em que se tenta descrever a situação atual, onde se repreende o capitalismo cada vez mais agressivo que começou a se voltar contra nós. E a grande ironia é que isso vem a acontecer justamente num momento em que acabamos de nos conformar com a falta de qualquer outra alternativa. Ou seja: justo no momento em que se precisa mais da esquerda – ou da RAF –, ela está acabada. É em torno deste vazio que gira a peça."
Entre vida política e privada
Stemann também conta que o duelo das duas mulheres mistura política e assuntos pessoais. E é justamente nesta intersecção que reside o dilema do Thalia Theater, que poderá ter de enfrentar a resistência das herdeiras de Meinhof. "Tenho problemas com pessoas que se consideram especialistas sobre a minha família e pretendem encher os bolsos com o destino dela", declarou Bettina Röhl, que diz contar com o bom senso de Jelinek, Stemann e do Thalia Theater.
Ulrike Meinhof foi uma jornalista engajada que entrou para a luta armada de esquerda da RAF. Numa ação espetacular, ela planejou e participou da libertação do ativista Andreas Baader em 1970. Em sua convicção pela luta anticapitalista, que a levou à clandestinidade, ao terrorismo e à prisão, Meinhof também envolveu sua família, chegando a levar suas filhas gêmeas, Regine e Bettina, para um acampamento de treinamento palestino. Condenada a oito anos de prisão em 1974, Meinhof foi encontrada dois anos depois enforcada na prisão de segurança máxima de Stammheim, na periferia de Stuttgart.