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Jelinek se debate com a linguagem

(Simone de Mello)10 de dezembro de 2004

A austríaca Elfriede Jelinek não comparece à entrega do Prêmio Nobel de Literatura. Em seu discurso, gravado em vídeo e já mostrado em Estocolmo, Jelinek luta com a linguagem. Leia abaixo fragmentos do discurso.

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O lugar do escritor é do lado de foraFoto: dpa

Como o poeta poderá reconhecer a realidade, se é ela que o permeia e o arrebata para o além, sempre? Por um lado, ele enxerga melhor de lá; por outro, não pode ficar no caminho da realidade. Não há lugar para ele ali. Seu lugar é sempre do lado de fora.

Elfriede Jelinek bei ORF.at

Às vezes, a linguagem se coloca no meio do caminho, por engano, e então não sai mais do caminho. (…) Agora ela me notou e se apoderou imediatamente de mim, esta linguagem. E investe seu poderio contra mim, levanta a mão contra mim, não gosta de mim. Ela gostaria de gostar das pessoas agradáveis no caminho, ao lado das quais ela vem correndo como um cão, o cão que ela é, fingindo obediência. Mas na realidade, ela é desobediente, não só a mim, mas a todos os outros também. Ela só é por si mesma.

Literatur-Nobelpreis geht an Elfriede Jelinek
Foto: dpa

Por favor, querida linguagem, será que você não quer prestar atenção antes pelo menos uma vez? Para que aprenda alguma coisa, finalmente aprenda as regras de pronúncia… O que você está gritando e resmungando aí? Você só está fazendo isso, linguagem, para que eu a aceite de volta em boas graças? Pensei que você nem quisesse mais voltar para mim! Você não me deu nem sequer um sinal de que pretendia voltar para mim. Se bem que nem teria feito sentido mesmo, eu não teria entendido o sinal. (…) Eu não a reconheço mais.

Elfriede Jelinek
Foto: AP

Só resta dizer: Pai nosso que estais. Ela [a linguagem] não pode estar se referindo a mim, apesar de eu ser pai da minha língua, ou seja, mãe. Sou o pai da minha língua materna. A língua materna já existia desde o começo, estava dentro de mim, mas então ainda não havia nenhum pai que fosse pertencente de alguma forma. Minha linguagem foi impertinente muitas vezes, foi isso que me deram a entender com toda clareza, mas eu não queria entender. Culpa minha. O pai acabou abandonando a família junto com a língua materna. Com toda razão. No lugar dele eu também não teria ficado. Agora a minha língua materna foi atrás do pai, foi embora.

Elfriede Jelinek
Foto: dpa Zentralbild

A mim a minha linguagem não diz nada, como haverá então de dizer algo aos outros? Mas isso não quer dizer que ela não tenha nada a dizer − isso os senhores têm que admitir! Quanto mais longe ela estiver de mim, mais tem a dizer, isso mesmo, só então ousa dizer aquilo que queira, ousa não me obedecer, se opor a mim. Quando a gente olha, vai se distanciando cada vez mais do objeto, quanto mais o observar. Quando a gente fala, consegue apreendê-lo de novo, mas não pode mantê-lo. Ele se solta e sai correndo apressado atrás da própria denominação, das tantas palavras que eu fiz e que perdi.

Elfriede Jelinek
Foto: AP

Esta linguagem só pode ter esquecido seu princípio, não há outra explicação. Ela principiou comigo, pequena. Não, não dá nem para dizer o quanto ela cresceu! Nem a reconheço mais. Eu ainda conseguia reconhecê-la quando ela era beeeem pequena. Quando tudo era silencioso, quando a linguagem ainda era minha filha. Mas de repente ela ficou enorme. Deixou de ser minha filha.

Sou prisioneira da minha linguagem, que é a vigia da minha prisão. Estranho − ela nem sequer toma conta de mim!