Mandela e o meu mundinho hipócrita
18 de julho de 2018Caros brasileiros,
No centésimo aniversário de Nelson Mandela eu me pergunto: o que eu fiz para combater o racismo e o apartheid dentro de mim? Ou na sociedade e no país onde vivo? Quando Mandela foi eleito o primeiro presidente negro da África do Sul, em 1994, eu morava no Brasil. E estava grávida da minha segunda filha.
Com filho, as coisas mudam. De repente, eu comecei a enxergar o apartheid social no Brasil de um outro ângulo. Nos primeiros meses da minha gravidez, nadei numa onda de euforia. As pessoas me cumprimentavam, achavam a minha barriga "linda" e me tratavam com muito carinho.
Foi uma experiência maravilhosa, pois, na Alemanha, a gravidez muitas vezes é vista como problema. Ter filho é visto como adeus a uma carreira profissional, dedicar-se à família é considerado uma traição à emancipação feminina, e cuidar de crianças é uma viagem sem volta a um mundo restrito a papinhas e fraldas. Afinal, quem tem filho é porque quis ter, se não quisesse teria evitado.
O Brasil, na minha percepção na época, parecia ter achado um caminho melhor. Muitas mulheres conseguiam conciliar família e trabalho. E aquelas que trabalhavam fora não eram vistas como mães desnaturadas. Elas recorriam ao "esquema brasileiro" e contratavam empregadas e babás, ou recorriam às creches particulares, mesmo com preços absurdos (veja a foto com a matéria no Jornal do Brasil).
Mas o que acontece se a babá ou a empregada engravidam? Será que elas recebem o mesmo carinho? Será que elas são cumprimentadas com a mesma euforia? Será que o "esquema brasileiro" também funciona para elas? O que elas sentem quando tomam conta do filho da patroa e têm que deixar o próprio filho com alguém que não sabem se ainda estará à disposição no dia seguinte?
Logo depois do nascimento da minha segunda filha, tive que responder a todas essas perguntas, pois a minha babá engravidou. Confesso que, num primeiro momento, fiquei chateada. Por que ela resolveu engravidar logo agora, quando eu preciso tanto da ajuda dela? Senti um germe racista dentro de mim. Achei a minha família mais importante que a dela, e me espantei com isso.
De repente, o meu mundinho hipócrita ruiu. Como correspondente de um jornal de esquerda, como é considerado o diário alemão Die Tageszeitung, de Berlim, eu fazia matérias sobre o apartheid social do Brasil, sobre a luta contra a escravidão disfarçada, sobre a reforma agrária esquecida, sobre o dia a dia nas favelas e o combate à pobreza.
"Combate à pobreza" é uma missão muito grande. Como eu, uma pequena correspondente de um pequeno jornal, poderia contribuir para isso? Afinal, pensando bem, eu fazia parte do apartheid social no Brasil. Vivia num condomínio, viajava o país inteiro e ganhava em marco alemão. Mas, mesmo se eu abandonasse tudo isso e fosse morar numa favela, será que isso ajudaria alguém?
Conversei com a minha babá, e para o espanto de muitas pessoas, nós resolvemos embarcar juntas numa aventura especial: encontrar um apartamento decente e pagável no Rio de Janeiro. Rodamos as favelas da cidade e ficamos horrorizadas com os preços abusivos. Chegamos à conclusão de que, quando se trata de imóveis, a solidariedade em comunidades carentes é bastante restrita.
Finalmente achamos um apartamento num conjunto habitacional no bairro de Taquara. Era um lugar que nos permitia viver em paz, criar filhos, com escolas e creches por perto e uma vizinhança mais ou menos tranquila. Eu vi a filha da minha babá nascer e fiquei feliz com a felicidade dela. Coloquei as minhas filhas na creche perto de casa, apesar dos preços abusivos.
Agradeço ter sido mãe no Brasil. Foi uma experiência que reforçou em mim a convicção de que todas as mães devem ter os mesmos direitos e merecem o mesmo respeito. Mesmo com a escravidão abolida no Brasil, a luta contra o apartheid social continua. No Brasil, milhões de mulheres guerreiras e valentes seguem o caminho de Mandela, sem palavras, mas com uma intuição natural. A força e a garra delas, para mim, foram e continuam sendo uma grande lição.
Astrid Prange de Oliveira foi para o Rio de Janeiro solteira. De lá, escreveu por oito anos para o diário taz de Berlim e outros jornais e rádios. Voltou à Alemanha com uma família carioca e, por isso, considera o Rio sua segunda casa. Hoje ela escreve sobre o Brasil e a América Latina para a Deutsche Welle. Siga a jornalista no Twitter: @aposylt e na internet: astridprange.de
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