A mulher da Alfândega
20 de junho de 2018Caros brasileiros,
É uma chuva de notícias ruins: a Lava-Jato no Brasil, a crise dos refugiados na Alemanha e o muro na fronteira entre México e Estados Unidos crescendo. Todo dia, uma notícia negativa. Não tem como fugir: chega por todos os canais – pelas redes sociais, pela televisão, pelo rádio, pela mídia impressa.
Mas o que acontece quando nós levamos essas manchetes para casa? Se o assunto na mesa de jantar vira a eterna crise política, econômica, global? Se nós sempre enxergarmos primeiramente o lado negativo de tudo o que acontece ao redor da gente?
Para mim, essas palavras simbolizam esse estado de espírito: "a mulher da Alfândega". Por trás delas, há uma história verdadeira. É a história da minha chegada ao Brasil, em 1989. É a história de um confronto entre duas mulheres de dois mundos.
A "mulher da Alfândega" no Rio de Janeiro não quis liberar o tapete que eu tinha trazido da Alemanha para o Brasil. Era um tapete pequeno do meu falecido pai, que eu levava de lembrança comigo. Mas a "mulher da Alfândega" insistia que era um tapete persa de valor e que, por isso, eu deveria pagar uma taxa para liberá-lo da Alfândega.
Eu insistia que era um tapete velho com valor meramente emocional e me recusei a pagar a taxa de importação para tapetes persas. A "mulher da Alfândega" então não queria mais conversa, e o tapete, junto com várias malas, ficou no depósito, até que um santo dia, meu marido foi lá para resolver o problema – e pagou.
Por causa da "mulher da Alfândega", poucos dias depois da minha chegada ao Brasil, eu já estava familiarizada com duas instituições importantes no país: a Alfândega e o despachante, uma figura que eu até então desconhecia. E as favelas ao lado da enorme Avenida Brasil que ligava o centro ao Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro.
Depois dessa experiência, eu comecei a ver os problemas do Brasil: a corrupção, a injustiça social, o trânsito pesado, o tráfico, a violência, a inflação, o desmatamento da Amazônia, etc. "A mulher da Alfândega" virou sinônimo dos problemas no Brasil, que começaram a dominar a nossa conversa em casa.
Era uma situação paradoxal: eu adorava os brasileiros, mas não parava de criticar o Brasil. Como os brasileiros são muito gentis, ouviam as minhas reclamações, até consentiam em vários pontos, mas ficavam com certo desconforto. Senti que, apesar de toda delicadeza comigo, eles se sentiam um pouco ofendidos em sua identidade como brasileiros.
Foi na Polícia Federal que entendi que não dava mais para continuar vivendo assim. Quando reclamei para o oficial que me atendeu que a prorrogação da minha carteira de estrangeira estava demorando demais, ele foi direto e disse: "As portas estão abertas". Abertas para voltar para Alemanha.
Primeiramente, fiquei zangada com essa atitude, mas depois me toquei. Se tudo era tão ruim no Brasil, por que eu insistia tanto em ficar lá? Por que criticar um país onde as pessoas se esforçam todos os dias para resolver problemas, sobreviver e não perder o astral? Não era admirável essa persistência e paciência?
O Brasil me sensibilizou por esses questionamentos. E, com isso, ampliou a minha perspectiva como correspondente e repórter também. Pois, por trás de cada notícia ruim, de cada problema, por mais cruel e difícil que seja, tem gente querendo resolvê-lo. Gente que combate a corrupção, que luta contra a pobreza, que cuida de crianças de rua, que financia projetos sociais, que arrisca a própria vida pela proteção do meio ambiente ou pelos direitos humanos. Gente que simplesmente quer continuar vivendo. Isso, sim, é assunto de pauta também.
Quando voltei para a Alemanha com a minha família, anos depois, tive que me lembrar dessa lição que já havia esquecido. Pois na minha pátria também encontrei muitas "mulheres da Alfandega". Comecei a reclamar do excesso de regras e proibições, da carga de impostos e seguros sociais, e da falta de vagas nas creches.
Depois de dois anos, parei de reclamar. Era como no Brasil: tinha que resolver os problemas do meu dia a dia, conciliar a vida familiar com a do trabalho. Como no Brasil, fiz trabalho voluntário para fazer uma pequena contribuição para as mudanças que tanto desejava.
Pouco a pouco, fui me reaproximando da minha pátria, consegui me ver como cidadã alemã que ama e critica o seu país ao mesmo tempo. A "mulher da Alfândega" sumiu. Quando olho para meu tapete que eu trouxe de volta do Brasil, lembro-me dela. Quero que ela não volte nunca mais, nem aqui, nem no Brasil.
Astrid Prange de Oliveira foi para o Rio de Janeiro solteira. De lá, escreveu por oito anos para o diário taz de Berlim e outros jornais e rádios. Voltou à Alemanha com uma família carioca e, por isso, considera o Rio sua segunda casa. Hoje ela escreve sobre o Brasil e a América Latina para a Deutsche Welle. Siga a jornalista no Twitter: @aposylt.
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