Lula é inocente?
20 de outubro de 2022Condenado em dois processos da operação Lava Jato – razão pela qual chegou a ficar 580 dias preso e teve sua candidatura barrada nas eleições de 2018 –, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) voltou à condição de inocente em 2021, com a anulação das condenações pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
A anulação se baseou em dois entendimentos da Corte: de que o juiz Sergio Moro foi parcial, o que comprometeu o direito da defesa a um julgamento justo, e de que os casos tramitaram fora da jurisdição correta.
"A imparcialidade do juízo é um pressuposto básico e irrenunciável de tudo que se faz num processo. E foi essa imparcialidade que foi derrubada. E os fatos mais recentes, o envolvimento político do juiz Moro, acabaram tornando essa narrativa quase que indissociável de tudo que aconteceu", afirma a professora da FGV-Rio e procuradora regional da República Silvana Batini.
Alçado à condição de herói nacional por sua atuação na Lava Jato, Moro era o juiz titular da 13ª Vara da Justiça Federal em Curitiba, no Paraná, berço das investigações.
Ele renunciou à magistratura no final de 2018 para assumir o Ministério da Justiça e Segurança Pública a convite do presidente eleito, Jair Bolsonaro (PL). No ano seguinte, o site The Intercept Brasil revelou o que seriam conversas privadas entre investigadores da Lava Jato e o ex-juiz. Os diálogos indicariam conluio entre o Ministério Público e a Justiça em prejuízo de Lula.
Em abril de 2020, após quase 16 meses como ministro de Bolsonaro, Moro anunciou seu desembarque do governo alegando interferência do presidente na Polícia Federal. A decisão do Supremo pela parcialidade do ex-juiz só foi sair mais de um ano depois do racha entre Moro e Bolsonaro, em junho de 2021.
Moro, que depois disso passou a antagonizar com Bolsonaro e ensaiou uma candidatura à Presidência da República, acabou se reaproximando do ex-chefe no decorrer da campanha eleitoral – movimento que o ajudou a se eleger senador pelo União Brasil.
A distinção entre inocente e inocentado faz sentido?
A suspeição de Moro inviabilizou qualquer análise sobre a culpabilidade do ex-presidente, já que as provas produzidas e os processos foram considerados comprometidos, daí a anulação deles pelo Supremo. Por esse motivo, não é tecnicamente correto falar que Lula foi absolvido ou inocentado nesses casos específicos, já que não houve um julgamento válido – é nessa tecla, a de que não houve absolvição, que batem críticos do petista.
Isso, porém, não faz dele alguém menos inocente aos olhos da Justiça, na avaliação de especialistas ouvidos pela DW.
No regramento jurídico brasileiro vale a presunção da inocência. A Constituição diz, no Artigo 5º, que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória". Em outras palavras: todos são inocentes até que se prove o contrário por um julgamento definitivo, contra o qual não caiba mais recurso. É este o caso de Lula, contra quem não há, desde a anulação dos processos da Lava Jato em 2021, mais nenhuma sentença válida.
Batini explica que a inocência não é um atestado a ser conquistado nos tribunais, e sim algo que se pressupõe de todos. "[A absolvição] não é um juízo que concede um status para a pessoa. Inocente somos todos até uma sentença condenatória transitar em julgado. Lula não precisa de uma sentença absolutória [que o absolva] para isso. É o contrário: para ele deixar de ser inocente é que precisaria de uma sentença condenatória."
Professor da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas, Oscar Vilhena Vieira diz ver uma confusão entre o uso popular do termo inocência e o seu significado jurídico. "As pessoas acham que ele não foi inocentado [porque] não teve sentença de absolvição", afirma. "O debate público se apropria de uma palavra para atribuir algum tipo de virtude moral às pessoas, e [alguns] usam isso contra seus inimigos políticos. Quer se fazer a inversão do ônus narrativo: já que não houve uma sentença de absolvição, então ele é culpado. Mas o que o direito diz é: já que não houve sentença condenatória, ele deve ser presumidamente inocente."
Tanto Batini quanto Vilhena dizem que, do ponto de vista jurídico, não faz sentido distinguir entre absolvição e inocência. "A distinção é mais importante no plano político do que no plano jurídico", afirma a docente da FGV-Rio. "Já a exploração política [do tema] pelo adversário me parece que é inevitável."
"Do ponto de vista político, tem que ficar muito claro que as acusações que foram feitas contra Lula não prosperaram na Justiça. Então, sobre aqueles fatos, ele é inocente. Se houver alguma outra coisa, alguma discussão, que seja feita. Mas sobre aqueles fatos, ele é inocente", frisa Pierpaolo Bottini, advogado criminalista e professor de Direito da USP.
Por que Lula foi condenado e preso?
Lula foi condenado duas vezes na Lava Jato por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Na primeira, o caso do tríplex no Guarujá, Moro entendeu que o ex-presidente recebeu o imóvel no litoral paulista de uma empreiteira. Na segunda, Lula foi apontado como beneficiário de obras em um sítio que frequentava com sua família em Atibaia, no interior paulista. Ambas as benesses teriam sido uma compensação de empresários por desvios de recursos da Petrobras durante os governos do PT.
Após a confirmação em segunda instância da condenação no caso do tríplex, pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, o ex-presidente se entregou em abril de 2018 à Superintendência da Polícia Federal em Curitiba.
À época, vigorava uma jurisprudência do STF, fixada em 2016, que previa o início do cumprimento da pena após condenação por órgão colegiado, mesmo ainda cabendo recurso da sentença. A decisão do TRF-4 também significou o impedimento formal de Lula, pela lei da Ficha Limpa, de disputar eleições.
Como Lula saiu da prisão
Em 7 de novembro de 2019, o plenário do STF voltou atrás e decidiu pela inconstitucionalidade da prisão antes do esgotamento de todas as possibilidades de recurso – com exceção de flagrantes, prisões preventivas ou temporárias.
A decisão abriu o caminho para a soltura do ex-presidente Lula, que deixou a Superintendência da PF em Curitiba no dia seguinte, após permanecer 580 dias sob regime fechado de reclusão.
Reviravoltas no STF levaram à anulação das condenações de Lula
Em março de 2021, o ministro do STF Edson Fachin decidiu que a vara de Curitiba, que até então cuidava de todos os processos envolvendo a Petrobras, não tinha competência para julgar os casos do ex-presidente Lula por ausência de vínculo comprovado com a estatal. Com isso, as condenações dele foram anuladas e os autos, remetidos a Brasília.
Dizia-se, nos bastidores, que a decisão de Fachin era uma tentativa de salvar a Lava Jato em um contexto de enfraquecimento da operação. Segundo essa versão, o ministro temia que a declaração de suspeição de Moro nos processos contra Lula pudesse provocar um efeito dominó, invalidando todo o trabalho da vara.
Ao determinar a mudança de foro, Fachin esperava tirar a suspeição da pauta da Corte, algo que acabou sendo aprovado mesmo assim por maioria no STF pouco depois, em junho do mesmo ano, levando à invalidação das provas produzidas contra o petista.
Na avaliação de Batini, essas mudanças "bruscas" de jurisprudência pelo STF geram dificuldade para quem trabalha com a interpretação da lei.
"O que a gente tem hoje no Brasil é uma dificuldade enorme de lidar com superposições de entendimentos diferentes no plano processual e com uma história política de polarização muito intensa", afirma a procuradora. "No plano jurídico já era uma grande confusão. E no plano político tem potencial catastrófico, porque em 2018 um candidato foi impedido de disputar uma eleição."
O que pesa contra o ex-presidente
Segundo levantamento da agência de checagem Aos Fatos, Lula foi formalmente inocentado de três acusações na Justiça: de tentar comprar o silêncio de um ex-diretor da Petrobras, de formação de organização criminosa e de aprovar uma medida provisória para favorecer empresas em troca de propina.
Os demais 23 casos são inquéritos arquivados e denúncias rejeitadas por prescrição (quando esgota o prazo previsto em lei para processar alguém), falta ou nulidade de provas, inépcia (quando a peça apresentada não atende aos requisitos legais), além de ações suspensas ou trancadas – inclusos aí o tríplex do Guarujá e o sítio em Atibaia, que em 2021 voltaram à estaca zero e, meses depois, prescreveram. No caso das acusações que prescrevem, Lula não pode mais ser julgado.
Moro já se pronunciou no passado sobre a decisão do STF, afirmando nunca ter havido "qualquer restrição à defesa de Lula" nos processos que ele conduziu, que suas decisões foram confirmadas em tribunais superiores e que o recado que está sendo dado hoje no Brasil é o de que "vale a pena roubar".
Para o advogado Bottini, a crítica de Moro é descabida, já que ele atuou "sob uma capa de imparcialidade" para produzir "uma condenação ilícita e ilegal", induzindo as cortes superiores ao erro. "Os tribunais olharam uma análise que era parcial, mas que estava encoberta essa parcialidade. Então ela está tão viciada quanto a decisão original."
"Acho que as pessoas têm razão em ficar incomodadas com a anulação dos processos. Mas se as autoridades desde o início seguissem a regra legal e não buscassem a condenação a qualquer custo, nada disso teria acontecido", completa Bottini. "Na medida em que as regras claras não foram respeitadas desde o início, cria-se essa sensação de impunidade. Mas acho que isso é um problema muito mais de quem julgou os processos do que de quem exerceu a defesa e alegava isso desde o início."
Vilhena diz ver instrumentalização política dos escândalos revelados pela Lava Jato, já que os desvios aconteceram durante as gestões do PT, mas também envolveram diversas outras lideranças, inclusive do PL de Bolsonaro e de siglas do Centrão que hoje integram sua base aliada. "Isso dificulta para a população fazer uma distinção clara entre ele [Lula] e os escândalos que foram apurados. Houve sentenças válidas e implementadas, inclusive as pessoas cumpriram e não houve nenhum recurso alterando o status dessas sentenças", afirma.