Livro popularizado pela fake news do "kit gay" faz 20 anos
25 de junho de 2021Há 20 anos era lançado na França o livro Le Guide du Zizi Sexuel, escrito por Hélène Bruller e ilustrado por Zep. Traduzido para mais de 25 países, chegou ao Brasil por meio do selo juvenil da Companhia das Letras em 2007 – rebatizado como Aparelho Sexual e Cia. Indicado para pré-adolescentes e adolescentes entre 11 e 15 anos de idade, o livro se tornaria epicentro de uma polêmica política protagonizada pelo hoje presidente Jair Bolsonaro e alimentaria fake news sobretudo durante o período das últimas eleições presidenciais.
"A educação sexual é fundamental para uma melhor qualidade de vida dos jovens", comenta a psicóloga e sexóloga Sandra Lima Vasques. "Este é um livro interessante porque fala sobre sentimentos com clareza de informações e um toque de humor. Na época da campanha [eleitoral de 2018] foi amplamente divulgado pelo candidato à presidência Bolsonaro. Ele foi um grande divulgador deste livro."
Uma divulgação involuntária, vale ressaltar. Aparelho Sexual e Cia. estava no radar do político desde quando ele, deputado federal, passou a engrossar o coro contra o programa Escola Sem Homofobia, que seria instituído em 2011 pelo Ministério da Educação (MEC) na gestão do petista Fernando Haddad. Por causa da forte oposição, o projeto não foi lançado.
O "kit gay"
O programa se baseava em um material didático direcionado a professores para tratar da cidadania e dos direitos humanos da população LGBT. Para os críticos, inclusive o então deputado Bolsonaro, era o "kit gay" – termo pejorativo que acabou originando uma série de fake news.
Bolsonaro passou a afirmar, em programas de TV, que o livro Aparelho Sexual e Cia. era um dos distribuídos pelo MEC. Ele também declarou que a obra teve espaço em um, nas suas palavras, "seminário LGBT infantil" – na verdade, um evento ocorrido em maio de 2012, sob o tema "infância e sexualidade", organizado pela Frente Parlamentar Mista Pela Cidadania LGBT, no Congresso Nacional.
Ao longo da campanha eleitoral de 2018, dentro da pauta moralista defendida pelo então candidato Bolsonaro, o tema voltou à tona. Ele chegou a levar o livro na entrevista concedida, durante a campanha eleitoral, ao Jornal Nacional, da TV Globo. E o material, deturpado por seus apoiadores, serviu para alimentar uma série de fake news a respeito do suposto "kit gay".
A polêmica reacendeu o interesse pela obra. Esgotada nas livrarias brasileiras, ela acabaria sendo relançada em setembro daquele ano. O MEC informou, na ocasião, "que não produziu nem adquiriu ou distribuiu o [referido] livro".
Os autores também chegaram a se manifestar em entrevistas. Bruller ressaltou que "falar sobre sexualidade é apenas informar, confortar para mais tarde, para o dia em que essas crianças terão se tornado adultas e estarão prontas para viver sua sexualidade". Zep lembrou que Bolsonaro "não foi o primeiro conservador" a se voltar contra a obra. "A princípio, sinto-me mais seguro por não ser amado por esse tipo de pessoa", comentou ele. "Se ele elogiasse os méritos do meu livro, ficaria muito preocupado."
"Sólida base pedagógica e rigor científico"
Procurada pela DW Brasil, a Companhia das Letras diz que não tem nada a acrescentar sobre a importância da obra, além do que foi divulgado, em nota, em 2018. A empresa enfatiza que o livro "enfoca todos os aspectos da sexualidade, com sólida base pedagógica e rigor científico".
"Justamente por sua seriedade e pela importância do tema – cuja dificuldade de tratamento foi superada pela leveza na abordagem de assuntos como a paixão, as mudanças da puberdade, a contracepção, doenças sexualmente transmissíveis, pedofilia e incesto –, a obra foi publicada em dez línguas e vendeu mais de 1,5 milhão de exemplares no mundo", afirma a editora, destacando que o material "virou um modelo de como informar os jovens sobre temas importantes e incontornáveis, a partir de um tratamento comprometido e cuidadoso".
A Companhia das Letras também lembra que "o conteúdo da obra nada tem de pornográfico" e que também inclui uma seção em que "alerta os adolescentes para situações de abuso, explica o que é pedofilia – mostrando como tal ato é crime –, o que é incesto e até fornece o contato do disque-denúncia […]".
Por fim, a editora classifica como "errônea" a afirmação de Bolsonaro na época, lembrando que o livro não fez parte "de nenhum suposto 'kit gay'" e nunca havia sido distribuído pelo MEC. "O Ministério da Cultura comprou 28 exemplares em 2011, destinados a bibliotecas públicas", diz a nota.
A importância da educação sexual
Especialistas reconhecem a importância de Aparelho Sexual e Cia.. "É um livro importante para os adolescentes entrarem em contato [com o tema], porque muitas vezes não vão encontrar esse tipo de informação dentro de casa, dada a resistência, o medo e a vergonha de muitos pais", afirma a sexóloga Lena Vilela, ex-diretora do instituto Kaplan - Centro de Estudos da Sexualidade Humana.
Ela atenta para o fato de que a maioria dos livros sobre o assunto indicados para essa faixa etária abordam sentimentos e o amor e as transformações do corpo. Este, por outro lado, inova ao tratar abertamente de carícias, beijos e as relações sexuais em si. "Não adianta negar essa informações. Eles [os adolescentes] estão vivendo um momento em que a natureza nos torna pessoas interessadas em sexo. Não é Bolsonaro e não é ninguém que vai conseguir acabar com esse interesse", comenta.
Vilela defende que a educação sexual é fundamental para a própria formação de jovens e adultos mais conscientes e respeitosos, evitando que se tornem abusadores em seus relacionamentos.
"As crianças merecem ser informadas. A informação protege o bom desenvolvimento psico-emocional delas", enfatiza a psicóloga e sexóloga Vasques. "Tudo tem de ser falado com clareza mas delicadeza. Para que as crianças possam se apoderar do seu corpo e ter uma adolescência mais leve. O preconceito não pode tampar nossa visão – mesmo que estejamos vivendo em uma época de preconceito, mediocridade e obscurantismo."
Fundador do Instituto Paulista de Sexualidade, o psicólogo Oswaldo Rodrigues afirma que embora na cultura brasileira predomine a ideia de que é a família quem deveria ser responsável pela educação sexual das crianças, a atividade, na prática, é "empurrada para a escola".
"[Sem livros como este], adolescentes somente terão outra alternativa para obtenção de informações sobre sexualidade: o colega ao lado, aquele que também não sabe o que deveria saber", argumenta ele. "Pesquisas de todas as últimas cinco décadas no Brasil apontam isso: ao não poder perguntar aos pais, quando a escola não tem um programa de educação sexual, o adolescente vai perguntar ao amigo da mesma idade, que se encontra na mesma condição de falta de informação."
Rodrigues ressalta que a importância dessa orientação bem-feita está não só na compreensão da própria sexualidade e do funcionamento dos corpos, mas também em "como se defender de assédios sexuais de adultos".
"Facções políticas que têm compreensões erradas sobre o desenvolvimento psicossexual de crianças e adolescentes devem ter outros objetivos e necessidades que os conduzem a ser contrários a que as crianças e adolescentes sejam preparadas para enfrentar possíveis abusos sexuais e morais", conclui o psicólogo.