Kurfürstendamm
7 de maio de 2011O bulevar Kurfürstendamm, em Berlim, é um desses locais onde a história parece quase palpável. Mas nesta que é uma das avenidas mais importantes da capital – se não de toda a Alemanha – todo esse significado não se faz sentir em monumentos a personalidades importantes: em vez de repousar sobre pedestais, aqui a história vive nas casas e entre elas, nas esquinas e nas pequenas praças.
Também abreviado como Kudamm, o nome significa literalmente "caminho aterrado dos príncipes eleitores". Pois, ao ser construída em 1542, a rua visava permitir ao príncipe eleitor Joaquim 2º transitar rapidamente a cavalo entre o Palácio da Cidade de Berlim, no centro, e o Pavilhão de Caça Grunewald, no portão oeste da cidade.
Faroeste à berlinense
Somente em 1875 Otto von Bismarck, fundador do Império Alemão, ampliou a trilha poeirenta, transformando-a num amplo bulevar. E nos anos seguintes o local se tornou uma espécie de parque de exposições para os avanços tecnológicos da burguesia ascendente.
Em 1882 já circulava aqui o primeiro ônibus elétrico do mundo. Quatro anos mais tarde, Carl Benz requeria a patente de seu veículo a motor: nasciam os automóveis com o quais em breve os berlinenses abastados estariam cruzando o Kudamm.
Em 5 de maio de 1886 começou a trafegar a primeira linha de bondes. A data é registrada nos anais da metrópole como inauguração da avenida, embora, a rigor, a zona não pertencesse à capital, e sim à cidade de Charlottenburg, somente anexada à Grande Berlim em 1920.
Em 1890 o empresário norte-americano Buffalo Bill passou pela cidade com seu show de faroeste – o qual, aliás, cunhou o clichê do Wild West na Europa, para as décadas futuras –, e registrou de maneira vívida sua impressão do Kurfürstendamm, ainda em obras:
"Diabos, esta rua muda de cara toda hora: casas de aluguel pomposas, vilas de luxo, andaimes, esqueletos de edifícios, pomares e hortas, um monte de terrenos baldios. Lembra o espírito aventureiro no Velho Oeste!"
"Onde a morte não tem lugar"
Com um pouco de imaginação, quem visita um dos representativos apartamentos da avenida consegue sentir ainda hoje como era a vida da alta burguesia judaica no início do século 20.
O luxo e a fartura nas residências dos 120 milionários e multimilionários que lá moravam por volta de 1913 era legendário: em 250 metros quadrados ou mais, a criadagem numerosa alimentava e paparicava as famílias, velhas tias ricas ou casais de artistas.
Entre as personalidades culturais mais célebres que cresceram na área está o filósofo e ensaísta Walter Benjamin (1892-1940). No escrito Infância em Berlim até 1900, ele eternizou a atmosfera especial dessa época: "Como descrever a sensação quase pré-consciente que emanava dessas moradias? A miséria não podia estar nessas dependências, onde nem mesmo a morte tinha lugar".
Em cena, os nazistas
Porém no início dos anos 1930 a época próspera e despreocupada chegou ao fim, também nos quarteirões em torno do Kudamm. A ascensão de Adolf Hitler destruiu o idílio burguês das famílias judaicas, culminando no assim chamado "pogrom do Kurfürstendamm", em 1931, com brutais agressões antissemíticas por parte da polícia nazista.
Dois anos mais tarde, as lojas de proprietários semitas sofreram boicote, para depois serem desapropriadas, muitos judeus emigraram. Em 1938, por fim, foi incendiada a famosa sinagoga da rua Fasanenstrasse, uma das dezenas de transversais do Kurfürstendamm.
Seguiu-se a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), destruindo ou danificando a maioria dos prédios da rua. A ruína da Igreja Memorial (Kaiser Wilhelm Gedächtniskirche) lembra este fato até os nossos dias.
Berço do cinema
De uma forma ou de outra, os 3,5 quilômetros do Kudamm sempre foram uma espécie de "Oeste Selvagem". Intelectuais de vanguarda, como Berthold Brecht, Erich Kästner ou Max Reinhard, debatiam no Romanisches Café. Em 1922 foi exibido aqui – e não em Hollywood – o primeiro filme sonoro do mundo.
Diga-se de passagem: uma parte da plateia adorou as "telas falantes", mas a outra protestou veemente contra o "enervante" efeito da nova invenção. No entanto, a sorte estava lançada, e na avenida logo se concentravam os primeiros grandes kinopaläste (palácios de cinema) do país, alguns modernos, outros bem pomposos.
Terminada a Segunda Guerra, a vida no Kudamm tentou fazer esquecer rapidamente as mazelas recentes. Já em 1945, estavam de volta o cinema, os desfiles de moda, os cafés de rua, e logo o bulevar conquistava nova notoriedade. Em 1952 as estrelas internacionais vindas para o Festival de Cinema de Berlim (mais tarde, Berlinale) desfilavam por ela em limusines e se hospedavam no hotel de luxo recém inaugurado.
Movimento estudantil e violência
Com a construção do Muro de Berlim, em 1961, a cidade foi dividida em Berlim Oriental e Ocidental: a Guerra Fria começava a ferver. E o Kurfürstendamm ganhou um sentido político inédito: ele era a vitrine do Ocidente livre, com edifícios comerciais modernos, muitos negócios e locais de diversão. O que lá acontecia era para ser visto pelo mundo inteiro.
As cabeças críticas do país decidiram reverter a seu favor toda essa atenção midiática, e a partir dos anos 60 a avenida passou a ser palco de manifestações políticas. Em 2 de junho de 1967, por ocasião da visita do xá da Pérsia a Berlim, as passeatas estudantis tomaram curso violento.
Um dos manifestantes, Benno Ohnesorg, foi morto com um tiro na nuca. O incidente alterou a paisagem política de toda a Alemanha e entrou para a história como catalisador do movimento estudantil de 1968.
Logo seguia-se mais um ato violento: em 11 de abril de 1968 o líder estudantil Rudi Dutschke sobreviveu por um triz a um atentado em pleno Kurfürstendamm. O movimento político já bastante extremo radicalizou-se ainda mais. De seus quadros saiu a Facção do Exército Vermelho (RAF – Rote Armee Fraktion), cujos atos terroristas abalaram o país na década de 70.
Uma festa, depois outra festa
Até a queda do Muro, o bulevar permaneceu o coração da metrópole. Tornou-se legendária sua mistura especial de alameda de passeio, zona de comércio, palco de protestos, bairro de lazer, ponto de encontro cultural e local da moda.
Quando os berlinenses têm algo a festejar, eles vão para o Kudamm: sempre foi assim. Em 1979 os homossexuais da cidade reuniram-se autoconfiantes para o primeiro Dia do Orgulho Gay (CSD, ou Christopher Street Day) da Alemanha. Desde então, a data é celebrada todos os anos.
Dez anos mais tarde, a primeira Love Parade deixava atônitos os passantes do Kudamm com uma verdadeira orgia de dança e música tecno. O caráter estridente e colorido do evento marcou o estilo de toda uma geração. Mas a festa jovem mudou de locação, quando suas proporções ultrapassaram a capacidade da avenida.
Na noite do dia 9 para 10 de novembro de 1989, transcorreu aquela que foi possivelmente a festa mais emocional do Kurfürstendamm até hoje: a da queda do Muro de Berlim. Os berlinenses orientais foram com seus Trabis – único automóvel fabricado na Alemanha comunista – até a rua cult, buzinaram,dançaram e choraram junto com seus irmãos do oeste. E mais uma vez imagens do Kudamm atravessavam o mundo.
Ressaca e ressurreição
Depois da festança, a ressaca. Agora in para os berlinenses chiques e os turistas de todo o mundo era Berlim Oriental, sua Friedrichstrasse, longa e também rica em história, a avenida Unter den Linden, no centro histórico da metrópole. O Kurfürstendamm perdeu o carisma, muitas galerias, salas de exibição e lojas tradicionais tiveram que fechar.
Mas a população do histórico bulevar é dura na queda. Na virada do século ela se solidarizou, buscou novos inquilinos para os escritórios e butiques, abriu as portas para os numerosos novos-ricos russos, reformou fachadas e lojas caras. Arquitetos de destaque projetaram novos prédios modernos, com muito vidro e perspectivas excitantes. Velhos cinemas foram transformados em film lounges para um público sofisticado.
A hautevolee – como o berlinense denomina os ricos e lindos – volta a marcar para um espresso no Kudamm. E a nova marca registrada da área é o Hotel Waldorf-Astoria, com 118 metros de altura e ainda mais caro e mais nobre do que os muitos cinco estrelas da capital.
Portanto, dinheiro e público estão de volta à mais famosa avenida do país. Agora cabe ver o que virá: o próximo capítulo na história do Kudamm apenas começou.
Autor: Kay-Alexander Scholz / Augusto Valente
Revisão: Alexandre Schossler