Justiça cassa liminar que proibiu governo de celebrar golpe
30 de março de 2019Uma desembargadora de plantão derrubou neste sábado (30/03) a liminar que determinou a proibição de atos em comemoração ao golpe de 1964, que completa 55 anos no domingo.
A decisão provisória que proibiu as celebrações não durou 24 horas. Ela havia sido expedida na sexta-feira pela juíza Ivani Silva da Luz, da 6° Vara da Justiça Federal do Distrito Federal, após um pedido da Defensoria Pública da União (DPU). A Defensoria havia entrado no caso após o governo do presidente Jair Bolsonaro determinar no início da semana que o Ministério da Defesa fizesse "comemorações devidas” em relação ao golpe de 31 de março de 1964.
Após a Justiça Federal ter proibido os atos, a Advocacia-Geral da União (AGU) recorreu. Na manhã deste sábado, a desembargadora de plantão Maria do Carmo Cardoso, do Tribunal Regional Federal da 1 Região, cassou a liminar. Com a nova decisão, as Forças Armadas ficam liberadas para realizar os eventos previstos para domingo.
O pedido da defensoria defendia que não fosse lida uma ordem do dia sobre o 31 de março que foi publicada na quarta-feira pelo Ministério da Defesa. O texto divulgado não falava dos crimes do regime militar ou caracterizava os acontecimentos de 1964 como um golpe.
Em seu pedido, a Defensoria Pública afirmou ainda que são de conhecimento público os "horrores" vividos durante o regime ditatorial, mencionando relatórios da Comissão da Verdade e dados sobre mortos, torturados e desaparecidos no período, que se estendeu de 1964 a 1985.
A juíza Silva da Luz havia aceitado os argumentos e disse ainda que comemorar o golpe é celebrar "a ruptura política deflagrada pelas Forças Armadas" e mencionou o direito fundamental à memória e à verdade, "com vistas à não repetição de violações contra a integridade da humanidade, preservando a geração presente e as futuras do retrocesso a Estados de exceção".
Mas para a desembargadora Maria do Carmo Cardoso entendeu que a ordem do dia divulgada pelo Ministério da Defesa não trouxe "nenhuma conotação ou ideia que reforce os temores levantados pelos agravados, de violação à memória e à verdade, ao principio da moralidade administrativa ou de afronta ao estado democrático de direito”. A desembargadora afirmou ainda que "o estado democrático de direito pressupõe o pluralismo de ideias e projetos” e que o dia "31 de março de 1964 sempre foi objeto de lembrança pelas Forças Armadas”.
A desembargadora também aceitou o argumento da AGU de que o pedido da DPU extrapolava a competência deste órgão, uma vez que a defensoria deveria atuar primordialmente na defesa de pessoas hipossuficientes, ou seja, carentes de recursos econômicos ou "necessitados jurídicos".
Segundo o jornal Folha de S.Paulo, como o aniversário do golpe vai cair num domingo, parte das unidades militares do Brasil já leu a ordem do dia durante eventos entre quinta e sexta-feira. Os atos consistiram em reunir as tropas em pátios internos de bases militares. Na quinta-feira, por exemplo, houve uma solenidade no Comando Militar do Sudeste com a presença de seis deputados estaduais do PSL, partido de Bolsonaro, na qual foi lida a ordem do dia sobre os eventos de 1964.
Trechos do texto diziam que "as Forças Armadas, atendendo ao clamor da ampla maioria da população e da imprensa brasileira, assumiram o papel de estabilização daquele processo” e "o 31 de março de 1964 estava inserido no ambiente da Guerra Fria, que se refletia pelo mundo e penetrava no país".
Ao longo da semana, vítimas e parentes de vítimas da ditadura haviam se somado ao coro e pediram ao Supremo Tribunal Federal (STF) que concedesse uma liminar impedindo as comemorações ordenadas pelo presidente. O pedido foi negado na noite de sexta-feira pelo ministro Gilmar Mendes.
O ministro argumentou que o instrumento usado pelo grupo, um mandado de segurança, não se aplicava ao caso porque buscou atingir a declaração do porta-voz da Presidência – quem anunciou a determinação de comemoração do golpe –, e não um ato formal de uma autoridade pública.
A determinação do governo Bolsonaro em celebrar o golpe também havia provocado manifestação de um relator das Nações Unidas, que apelou para que o Planalto reconsiderasse seu plano de comemorar os 55 anos do golpe. Fabián Salvioli, que é relator especial das Nações Unidas sobre promoção da verdade, justiça, reparação e garantias de não-repetição, havia dito que celebrar um regime que cometeu "crimes horrendos" é algo "imoral e inadmissível".
Na última segunda-feira, o porta-voz da Presidência, general Otávio Rêgo Barros, anunciou que Bolsonaro havia determinado ao Ministério da Defesa que fossem feitas "comemorações devidas" no próximo domingo, 31 de março, para marcar o início da ditadura militar.
O general ainda afirmou que Bolsonaro não considera que houve um golpe militar em 1964. O próprio presidente disse ao longo da semana que, em sua concepção, não houve ditadura militar no Brasil e defendeu que todo regime, como todo casamento, tem alguns "probleminhas".
Na quinta-feira, no entanto, ele suavizou o tom. Segundo Bolsonaro, a ordem não foi para que as Forças Armadas comemorem o golpe, mas que "rememorem". "Foi rememorar, rever, ver o que está errado, o que está certo. E usar isso para o bem do Brasil no futuro", afirmou o presidente, que é capitão reformado. Segundo a Folha de S.Paulo, Bolsonaro resolveu mudar o tom após ser aconselhado pelos seus ministros militares, que ficaram contrariados com a publicidade que Bolsonaro conferiu ao evento. O governo também alterou o termo escrito em sua agenda pública, substituindo “solenidade comemorativa” por “solenidade alusiva” a 64.
O 31 de março foi retirado do calendário oficial das Forças Armadas em 2011 por determinação da então presidente, Dilma Rousseff, que foi torturada no regime ditatorial.
Bolsonaro sempre afirmou que o período de 21 anos não foi uma ditadura. Durante a votação do impeachment de Dilma, em 2016, ele chegou a homenagear o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, reconhecido pela Justiça de São Paulo como torturador durante o regime militar.
A ditadura militar, que se estendeu de 1964 a 1985, teve início com a derrubada do governo do então presidente democraticamente eleito, João Goulart, e foi marcada por censura à imprensa, fim das eleições diretas para presidente, fechamento do Congresso Nacional, tortura de dissidentes e cassação de direitos.
Segundo dados da Comissão Nacional da Verdade, mais de 8 mil indígenas e ao menos 434 suspeitos de serem dissidentes políticos foram mortos ou desapareceram forçadamente durante o regime. Estima-se ainda que dezenas de milhares de pessoas foram arbitrariamente detidas e torturadas.
"As famílias no Brasil estavam alarmadas e colocaram-se em marcha. Diante de um cenário de graves convulsões, foi interrompida a escalada em direção ao totalitarismo. As Forças Armadas, atendendo ao clamor da ampla maioria da população e da imprensa brasileira, assumiram o papel de estabilização daquele processo”, destacava o texto.
JPS/ots
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