Julgamento para esclarecer tráfico de tecnologia nuclear
17 de março de 2006Um mercado negro global de armas atômicas, uma obscura rede de líderes e intermediários, envolvendo continentes e ditadores dispostos a pagar bilhões pela bomba – pode parecer a trama de um filme de ação. Mas trata-se do contexto real de um julgamento aberto nesta sexta-feira (17/03) na cidade alemã de Mannheim, no qual um engenheiro e executivo alemão está sendo acusado de violar leis de controle armamentista e de exportação.
Gotthard Lerch é o primeiro suposto membro da máfia nuclear global liderada pelo cientista paquistanês desacreditado Abdul Qadeer Khan a ser levado a julgamento. O réu é acusado de fornecer centrífugas, manuais e sistemas de controle para fabricação de bombas atômicas ao líder líbio Muammar Kadafi no ano 2000. De acordo com a Promotoria de Mannheim, Lerch teria recebido 55 milhões de marcos alemães (28 milhões de euros) por serviços prestados, obtendo um lucro de 25 milhões de marcos.
"Wal-Mart do mercado negro da proliferação"
A informação veio à tona pela primeira vez quando um navio alemão com destino à Líbia foi interceptado em outubro de 2003, levando um carregamento de equipamentos nucleares.
Na época, a delicada situação causada pelo confisco obrigou Kadafi a divulgar os nomes de todos os fornecedores de tecnologia e expertise para o programa nuclear de Trípoli. Isso, por sua vez, escancarou detalhes sobre a rede global de tráfico de armas de Khan e o oferecimento de tecnologia nuclear aos regimes do Irã, da Coréia do Norte e da Líbia.
Khan, também conhecido como o "pai da bomba atômica paquistanesa", teve que se desculpar publicamente ao povo paquistanês no início de 2004, sendo submetido à prisão domiciliar. Desde então, buscas e prisões em diversos países da Ásia e da Europa, além da África do Sul, levaram as autoridades a compreender o que o chefe da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), Mohammad el Baradei, chamou de "um verdadeiro Wal-Mart do mercado negro da proliferação [nuclear]".
Atenção indesejada
Embora a Alemanha seja o único país no qual foi aberto inquérito para investigar as operações da rede nuclear de Khan, não se pode negar que o processo atrai atenção indesejada quanto ao seu envolvimento em um caso de contrabando ilegal de material nuclear.
Através de intermediários e empresas em diversos países europeus, companhias e cidadãos alemães forneceram equipamentos, materiais e conhecimento tecnológico para programas nucleares no Paquistão, na Coréia do Norte e em outras nações aspirantes a potências nucleares desde os anos 80.
Na década de 80, autoridades alemãs investigaram ostensivamente o envolvimento de Gotthard Lerch na apropriação ilegal da planta de uma unidade conjunta teuto-britânico-holandesa de enriquecimento de urânio na Holanda. Aparentemente, foi quando ele entrou em contato com Abdul Qadeer Kahn. Lerch, no entanto, nunca foi condenado.
Erich Schmidt-Eenboom, escritor e especialista em agências de inteligência, considera dois possíveis motivos que justificariam o envolvimento da Alemanha. "Em primeiro lugar, a Alemanha detém a tecnologia de ponta necessária para o enriquecimento de urânio e, em segundo, é um país voltado à exportação", disse. "Some esse dois fatores e não será surpreendente encontrar empresas envolvidas. Sempre haverá ovelhas negras interessadas apenas nos altos lucros."
Problema é falta de recursos para controle
Ao mesmo tempo, pode ser que o problema não se deva a fracas leis de controle de exportação, mas a uma questão de recursos. Segundo Mark Hibbs, editor de Ásia e Europa da revista Nucleonics Week, a tática empregada por muitas empresas envolvidas no tráfico tira proveito das variadas diretrizes da União Européia para dissimular a origem dos equipamentos.
"No final dos anos 80, o governo alemão assumiu a dianteira na criação de leis de controle à exportação e na coordenação e harmonização dessas leis com as regras da UE", disse Hibbs. "Hoje, o principal problema é que as autoridades de controle não possuem recursos suficientes – e isso inclui logística, dinheiro, pessoal – para detectar operações de contrabando. Países interessados em importar tecnologia para seus programas nucleares se aproveitam disso para lograr o sistema."
Novos detalhes sobre o Irã?
Apesar da indesejada atenção que o caso traz à Alemanha, especialistas concordam que o significado do julgamento dessa sexta-feira não pode ser ignorado. "O processo é de extrema importância, pois chama a atenção da comunidade internacional para o problema da proliferação ilegal", explica Götz Neuneck, da Universidade de Hamburgo.
Segundo ele, o significado do inquérito só cresceu devido ao conflito internacional em torno do programa nuclear iraniano.
"Há inúmeras perguntas não respondidas nos relatórios da AIEA sobre o Irã", avisa, acrescentando que é fato conhecido desde os anos 80 que a máfia de Khan forneceu tecnologia nuclear a Teerã. "Seria excelente para a não-proliferação internacional se o julgamento pudesse divulgar detalhes e ajudar a iluminar cantos escuros."