Joãozinho e Maria no reino dos pedófilos
11 de janeiro de 2005Um sinistro estudo sobre pedofilia. Assim se poderia definir a nova montagem da apreciadíssima obra de Engelbert Humperdinck (1854-1921), Hänsel e Gretel, idealizada pelo diretor de ópera italiano Giancarlo del Monaco para o Teatro de Erfurt. A estréia está marcada para 15 de janeiro. Se a mídia e os moralistas deixarem.
A – em si macabra – trama original, qualquer criança conhece de cor: Hänsel (Joãozinho) e Gretel (Maria) perdem-se na floresta e vão parar na casa de uma bruxa. O que parece uma acolhida calorosa não é mais do que um prelúdio ao canibalismo: Hänsel é trancafiado numa gaiola e engordado com doces, para ser comido mais tarde pela anfitriã.
O casal de irmãos só consegue escapar da morte graças a uma boa dose de astúcia e sadismo: Gretel finge não saber como acender o forno, e na primeira oportunidade assa viva a bruxa má. Final feliz.
Grimm pós-Dutroux
Como se não bastassem os tons mais do que drásticos do conto de fadas compilado pelos filólogos Irmãos Grimm, Giancarlo, filho do legendário tenor Mario del Monaco, reinterpretou a obra ultra-wagneriana de 1893 de um ponto de vista contemporâneo, pós-Dutroux, pós-Casa Pia de Lisboa, pós Michael Jackson.
"Uma verdade quase inarticulada atravessa a peça e o texto: a da pedofilia, da violência e abuso sexual contra crianças", analisa o artista italiano de 61 anos. Ele decidiu quebrar o tabu, "mesmo correndo o risco de ser tachado de diretor sem-vergonha".
O pai de quatro filhas está bem informado sobre o tema pedofilia: "Hoje a prostituição e pornografia infantis são um negócio lucrativo". Começando com vídeos que mostram o estupro de bebês de poucos meses, o setor fatura seis bilhões de euros em todo o mundo, comenta Del Monaco.
Prostitutas, cocaína e vídeos pornô
Embora partindo do tradicional highlight da programação natalina infantil, esta versão de Hänsel e Gretel é exclusivamente para adultos. Del Monaco manteve-se fiel à música e libreto originais (ambos de Humperdinck), que são então confrontadas com as imagens do cenógrafo Peter Sykora.
Seu palco remete a um mundo bem mais incômodo do que o lugar-nenhum medieval do conto de Grimm. "O bosque é aqui uma zona de meretrício, com vitrines, arranha-céus, montes de lixo e crianças mendigando". A Mãe é uma prostituta que espanca as crianças, o Pai – como no original – é um bêbado.
O Homenzinho de Areia revela-se um capanga cheirador de cocaína, que persegue Hänsel e Gretel com uma câmera de vídeo, a fim de servi-los à Bruxa, "para o seu prazer". Del Monaco vê na tradicional vilã "o tio bonzinho, o pervertido e também o religioso". O diretor italiano faz questão de enfatizar: "Não critico a Igreja, mas sim seu processo de recalcamento".
Apoiado pelo Unicef, psicólogos e polícia
Giancarlo del Monaco tem ainda um argumento histórico a favor dessa concepção atualizada do conto de Joãozinho e Maria. Seus estudos de mais de um ano mostraram que os Irmãos Grimm se basearam numa ocorrência verídica: uma mulher considerada bruxa haveria realmente atraído duas crianças, as violentado e devorado em seguida.
A direção musical da já controvertida montagem é de Karl Prokopetz. Ao contrário da prática usual, os papéis de Hänsel e da Bruxa serão cantados por homens. Antes mesmo da estréia, a imprensa sensacionalista vem tentando situar a encenação na onda hardcore que tem assolado os teatros alemães, de um Rapto do Serralho no bordel à sexualmente explícita XXX.
Porém, nada indica que a ousada concepção se dirija aos voyeurs e consumidores da violência teatralizada gratuita. Indício de uma causa mais nobre é o Teatro Municipal de Erfurt estar colaborando, nesta produção, com o Unicef e o Weisser Ring, uma organização de ajuda a vítimas de abuso sexual, além das secretarias de Justiça e do Interior da Turíngia, a polícia e psicólogos infantis.
Hänsel e Gretel
estréia em 15 de janeiro, no Teatro de Erfurt, e suas récitas serão complementadas por palestras e discussões.