Há 25 anos Brasil perdia Betinho, símbolo do combate à fome
9 de agosto de 2022Naqueles anos de ocaso da ditadura militar brasileira, Elis Regina (1945-1982) emprestou sua voz para cantar uma obra que se tornaria o hino de uma geração. O bêbado e a equilibrista, composta por João Bosco e Aldir Blanc (1946-2020), dizia que o "meu Brasil" é aquele "que sonha com a volta do irmão do Henfil".
Henfil era apelido do celebrado cartunista Henrique de Souza Filho (1944-1988). Seu irmão era o sociólogo Herbert José de Souza (1935-1997), mais conhecido como Betinho, intelectual e ativista dos direitos humanos que, por conta do regime autoritário, amargava um exílio que já durava mais de oito anos.
Nascido no norte de Minas Gerais, Betinho formou-se em sociologia em 1962, pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). No governo do presidente João Goulart, foi assessor do Ministério da Educação (MEC) e defensor das chamadas reformas de base, entre elas a agrária. O golpe militar o colocou nas frentes de oposição — obrigando-o, na década seguinte, ao exílio no Chile, depois no México e no Canadá.
Se Betinho já tinha uma trajetória conhecida como defensor de reformas estruturais na organização do Estado brasileiro antes do exílio, foi após a sua volta ao país, em 1979, que ele se tornou um ativista-chave no combate à maior mazela social do brasileiro: a fome.
"O alto impacto da vida e obra de Betinho no tema fome e combate à pobreza pode ser medido não só pelo sentido de urgência introduzido por ele, como pela durabilidade e vitalidade da agenda e das instituições por ele criadas", avalia o economista Marcelo Neri, diretor do Centro de Políticas Sociais FGV Social, citando o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) e a organização Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida — fundados por Betinho em 1981 e 1993, respectivamente.
Betinho fundou a Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, a primeira grande campanha nacional da sociedade civil sobre o tema, para mobilizar diversos segmentos da sociedade na busca de melhorias assistenciais, com a criação de comitês locais e estímulos à participação cidadã.
"Betinho e vários artistas e personalidades foram à TV e aos jornais estimular cada brasileiro a fazer o que estivesse ao alcance de cada um para resolver o problema da fome no país", relembra o site da Ação da Cidadania. "E, a partir de uma carta, denunciaram a fome e a miséria de milhões de brasileiros como os principais problemas do país."
Naquele momento, 32 milhões de brasileiros estavam abaixo da linha de pobreza, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), e, portanto ameaçados pela fome.
Quase três décadas depois, 33 milhões passam fome no Brasil, de acordo com levantamento divulgado em junho pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan), o que reaviva a importância da luta impulsionada por Betinho, famoso pela frase "Quem tem fome tem pressa".
Sob o lema "Andamos 30 anos para trás", a Ação da Cidadania, descrita como o movimento social mais reconhecido do Brasil, realiza atualmente uma campanha em que propõe: "Se você não passa fome, seja parte da solução."
Lições de Betinho
Especialistas concordam que o trabalho de Betinho no combate a fome mudou a maneira como brasileiros entendem e tratam a questão.
"A influência de Betinho foi além da ação da sociedade civil, orientando as políticas públicas tanto na época em que a pobreza caía como nas adversidades do período mais recente", ressalta Neri. "A marca de Betinho na superação da fome e da pobreza transcendeu os limites do seu tempo e da sua existência. Hoje, ele é parte da cultura de solidariedade, o que é muito especial num país desigual como o Brasil."
O filósofo e teólogo Fernando Altemeyer Junior, professor na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), acredita que programas sociais como Fome Zero e Bolsa Família "não teriam dado certo sem o crescimento de uma consciência crítica decorrente dessa luta que foi muito marcada por Betinho durante décadas".
Para o sociólogo Tiago Pereira Andrade, coordenador e professor na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), Betinho deixou três lições. "A primeira, para os acadêmicos: o dever de aproximar a teoria e a prática na sociologia, mesmo que muitos sociólogos não tenham conseguido chegar nem perto disso", diz ele.
"Sua luta humanitária contra a desigualdade, pelos que passam fome… Ele tratava de denunciar os abismos sociais e salvar vidas de uma forma urgente e direta", aponta Andrade.
A segunda lição é, segundo o professor, a cidadania. "Ser cidadão não é somente cumprir seus deveres cívicos cumprindo leis, mas é se sentir realmente parte do tecido social", explica. "A marca da cidadania passa pela solidariedade, simpatia, empatia e entendimento que o que nos faz humanos é a proteção da espécie, independentemente de qualquer ideologia."
Por fim, ele ressalta que sua trajetória foi toda marcada pela superação, com o enfrentamento de doenças difíceis. "E, mesmo sofrendo tudo isso, lutou em movimentos estudantis, foi perseguido pela ditadura militar, foi um grande acadêmico, teve grande atuação política, liderou diversos movimentos sociais, sempre com bandeiras nobres”, acrescenta Andrade.
Hemofílico — assim como eram sua mãe e seus dois irmãos, o cartunista Henfil e o músico Chico Mário (1948-1988) —, desde a infância teve a saúde frágil. Em 1986 descobriu que era soropositivo, tendo contraído o HIV em alguma das transfusões de sangue a que era obrigado a se submeter periodicamente por conta da hemofilia. Junto a amigos, fundou e presidiu a Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia).
"Precisamos de milhares de ‘betinhos' e ‘betinhas'"
Altemeyer destaca a "sintonia e leveza pessoal no viver democrático" como as grandes qualidades de Betinho. "Para ele, a democracia era mais do que um conceito, um projeto ou um sistema. Era o andar cotidiano vivido, sofrido e alegremente sonhado", comenta.
"As atuações de Betinho passam pelos setores público, privado e terceiro setor”, pontua Andrade. "Ele liderou inúmeros movimentos de combate à fome e a pobreza, participando de campanhas veiculados nos principais canais midiáticos da época. Nesse sentido, contribuiu muito para uma mudança de mentalidade coletiva em relação ao assunto", diz o sociólogo.
"Depois de 25 anos de sua morte, Betinho segue sendo um símbolo forte a mexer com nossas entranhas e nosso pensamento", enfatiza Altemeyer. "Precisamos ensinar nossa juventude com a vida e as práticas de Betinho, em tantas frentes de sua luta: aids, hemofilia, fome, democracia, economia, transnacionais, luta pela Terra, pela sociedade justa e fraterna."
"Ele segue como farol potente para o Brasil não naufragar. Precisamos de milhares de adolescentes ‘betinhos' e ‘betinhas'", diz o professor.
Betinho morreu em 9 de agosto de 1997, há 25 anos, quando já estava bastante debilitado pela aids. A doença que o levou à morte foi a hepatite C, também adquirida por transfusão de sangue. Ele tinha 61 anos e morreu em casa, no Rio.