Hans Günter Flieg
4 de maio de 2008Além de ser considerado um dos introdutores da visão da Bauhaus na fotografia do país, a obra de Flieg é um precioso testemunho do desenvolvimento industrial de São Paulo e do Brasil entre as décadas de 1940 e 1970.
Em 1939, fugindo da Alemanha nazista, o fotógrafo alemão de origem judaica emigrou aos 16 anos para o Brasil, onde se tornou pioneiro da fotografia industrial, de publicidade e de arquitetura.
Hans Günter Flieg, brasileiro desde 1965, nunca mais havia deixado o país após sua imigração. Uma exposição em Chemnitz, sua cidade natal, resgata agora sua obra. No contexto da exposição, o fotógrafo voltou à Alemanha após quase sete décadas. Em entrevista exclusiva a DW-WORLD.DE, ele falou sobre o seu trabalho, sua vida no Brasil e sua volta a Chemnitz.
DW-WORLD: Como é voltar ao país e à cidade natal após sete décadas? Por que demorou tanto em voltar à Alemanha?
Hans Günter Flieg: Eu diria que a volta se prende ao convite da cidade para fazer essa exposição do meu trabalho. Há dois anos, o meu arquivo foi passado para o Instituto Moreira Salles e o trabalho do instituto foi que possibilitou, praticamente, essa exposição, porque eu não teria mais feito ampliações fotográficas tradicionais nesse prazo e nesse número para uma exposição.
Como fotógrafo alemão de origem judaica, exilado no Brasil, o senhor acredita que, além do sustento, a fotografia o ajudou a aliviar a dor do exílio?
Eu vim como exilado, mas não me sinto nem um pouco exilado no Brasil. E, sem dúvida, o meu trabalho me ajudou a criar raízes. No caderno editado pela Comissão de Fotografia em 1981, por ocasião da minha primeira retrospectiva no MIS, eu escrevi algo sobre isso.
Pediram-me para fazer a introdução do caderno. Eu mencionei então o trabalho de calendário para Brown Boveri [indústrias elétricas] por ocasião do sesquicentenário da Independência em 1972. Eu fiz uma série de calendários para eles. Fiz trabalho técnico durante muitos anos.
Esse calendário era a respeito do Monumento do Ipiranga. A intenção era incluir fotos da cripta do monumento. Não sei se o senhor sabe, mas Dom Pedro 1° e Dona Leopoldina estão em sarcófagos de mármore de Ubatuba, um mármore verde muito bonito com pintas de ouro.
Como eram fotos em cores, eu achei necessário que houvesse algumas flores. Eu estava então procurando flores lá pelo Parque do Ipiranga. Não tinha ninguém que vendesse fora, mas havia uma lojinha de uma moça que era nissei, onde encontrei palmas de várias cores. Escolhi e expliquei para a moça que se tratava de palmas para a cripta. Ela me ajudou a escolher e na hora de pagar, disse-me: imagine que eu vou cobrar por palmas para nossa imperatriz. O senhor não sabe quantas vezes eu levo flores para lá.
Passou-me pela cabeça e eu escrevi isso: uma moça nissei, cujos antepassados, na época de 1830 ou até antes de quando Dona Leopoldina morreu, eram súditos do teno, do imperador do Japão. Eles não tinham nada a ver com os Habsburgo ou com os Orléans e Bragança.
Acho que isso cria uma identidade, pois o menino ou a menina que nasceu no Brasil, descendente de japoneses, de alemães, de franceses, de qualquer etnia, aprende bem ou mal, na escola, a história do Brasil. Esta vem a se tornar a sua história. Muito poucos têm a vaga idéia da história do povo de origem.
Então, isso talvez responda um pouco o que o meu trabalho fez a mim. Eu nem era filho de imigrante. Eu era imigrante mesmo. Vim para o Brasil com 16 anos.
O senhor já falava português quando chegou ao Brasil?
Quando eu cheguei ao Brasil, eu não falava. Eu me lembro que conversava com um moço italiano numa mistura de latim com inglês. Enfim, a gente tem que aprender e vai aprendendo.
O seu primeiro trabalho como fotógrafo profissional em São Paulo foi um catálogo de cristais?
Não, não foi meu primeiro trabalho. O trabalho para os Cristais Prado começa por volta de 1947. Eu comecei a trabalhar por conta própria em 1945. Eu trabalhei com cristal durante muito tempo, até meados dos anos de 1970: Prado, Lusitana, Nadir Figueiredo. Uma foto que está exposta foi feita para o então jovem Mario Seguso, dos cristais Cá D'Oro de Poços de Caldas – um cristaleiro com uma tradição de modestos 600 anos em Murano.
Na melhor tradição moderna, suas fotos valorizam a forma, o contraste e a composição. Como o movimento Bauhaus dos anos de 1920-1930 o influenciou?
De fato, foi uma época que de certa forma me influenciou. Já em casa, meu pai estava ligado às artes, ele era colecionador quanto à mobília e outras coisas. Era um mobiliário encomendado, eu cito o nome de Bruno Paul. Havia alguma coisa quanto a estilo, linha, forma e quanto à beleza em geral que deve ter influenciado o meu trabalho.
Se o senhor tivesse fotografado o Brasil como turista, como o fizeram tantos outros fotógrafos, o senhor acredita que haveria tido outro olhar sobre o país?
O que foi importante para mim foi manter uma qualidade que me evitasse ter que visitar fregueses com um mostruário embaixo do braço. E que houvesse uma recomendação de um para outro.
A emigração e as origens desta emigração fizeram com que a gente descesse a escada. De repente, eu me encontrei num nível onde era necessário ganhar dinheiro de qualquer forma. Mas por outro lado havia uma necessidade imensa de manter uma qualidade de trabalho, de auto-exigência. Porque, na medida que você exige de si, você faz o seu caminho.
Quando o senhor chegou no Brasil, existiam fotógrafos que faziam um trabalho como o seu? Existiam outros alemães que o ajudaram?
Ao contrário, nessa época cada um trabalhava por si. Não havia um senso corporativo. Eu tinha uma idéia de fotografia. Tinha feito um curso na Alemanha. No Brasil, trabalhei dois anos na gráfica Ypiranga e dois anos na gráfica Niccolini.
Quando entrei na Ypiranga, em 1941, já era uma firma de mais de 40 anos. Foi fundada por volta de 1895, curiosamente por gráficos da Saxônia. Depois eu fui para a gráfica Niccolini. Lá também encontrei um chefe cuja origem não me é bem certa. Não posso assegurar se ele nasceu na Alemanha ou em São Paulo. Ele se chamava Kurt Eppenstein, um gráfico exímio. Aprendi muito nos dois anos que lá fiquei.
Talvez o nome de um bom amigo meu já falecido lhe seja conhecido, chamava-se Fred Jordan [designer gráfico alemão naturalizado brasileiro], artista gráfico também, que começou a trabalhar um pouco depois de mim na Niccolini e ficou ligado a eles até praticamente a sua morte.
Quantas fotos estão expostas em Chemnitz?
Estão expostas 120 fotos. Elas foram escolhidas em São Paulo, no instituto. Uma parte ainda foi escolhida por outra pessoa sem minha presença. Então o material foi digitalizado no Rio de Janeiro e de lá foi passado para uma firma de Düsseldorf, que executou as ampliações. O prazo que tivemos para a execução deste trabalho foi muito curto. Foi um milagre de todas as partes que a exposição, se não pontualmente, mas quase pontualmente, chegou a ser pendurada.
O senhor ainda tem muitas lembranças de Chemnitz ou, parafraseando Carlos Drummond de Andrade, ela seria "apenas um retrato na parede"?
É curioso que as pessoas com que eu telefonei aqui em Chemnitz se admiraram, tanto que mencionaram isso em reportagem, dos detalhes que eu tinha na cabeça, nomes de rua e um monte de coisas. Eu vivi aqui na cidade durante 14 anos. Depois passei dois anos em Berlim, mas ainda passei férias aqui. Quer dizer, a cidade é a minha cidade.
A exposição Hans Günter Flieg. Fotografia Documental do Brasil (1940-1970) está em cartaz até 01 de junho próximo no museu Kunstsammlungen Chemnitz.