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Maldades em nome do bem

Augusto Valente18 de julho de 2007

Um dos mais maiores representantes vivos do "kabarett" austríaco completa 85 anos. Mas a idade não apagou o moleque iconoclasta dentro deste artista judeu, para quem a arte é a única pátria.

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Georg Kreisler recebeu o Prêmio Bávaro de Teatro Satírico em 2006Foto: picture-alliance/dpa

Rabenschwarz: "negro como um corvo". Assim se costuma classificar o humor do autor, cabaretista e pianista virtuose Georg Kreisler. Imagine a seguinte letra cantada sobre uma exuberante melodia de valsa vienense:

Amor, o tempo está fantástico, / Não agüento ficar em casa; / Hoje é preciso sair pela natureza afora, / Para a primavera multicor! [...]
As árvores estão verdes e o céu tão azul / Vamos envenenar as pombas do parque! [...]
Primeiro, espantemos os pardais, / Eles são rápidos demais, devoram o veneno todo num instante, / E a pombinha, coitada, fica só olhando. [...]
Leva algo para a gente comer... / Mas põe no outro bolso! / Vamos envenenar as pombas do parque!

Menina dos Três Olhos Azuis

De uma só cajadada, Kreisler sacudia, em plena década de 1950, diversos relicários da burguesia austríaca: sua pretensa delicadeza de sentimentos, a cultura do lazer primaveril-dominical, o amor piegas pela natureza e os animais. E, pior de tudo, corrompendo a valsa – o mais sagrado entre os gêneros da música nacional.

Este é apenas um pequeno exemplo da vasta produção satírico-surrealista do chansonnier austríaco, que completa 85 anos de idade em 2007. Com a mesma desenvoltura, ele discorreu sobre os segredos sórdidos do cidadão acima de qualquer suspeita, a patética ternura de "duas velhas tias dançando tango no meio da noite", sobre clichês anti- e pró-semitas, críticos musicais incompetentes e músicos frustrados, políticos corruptos, capitalistas selvagens. E cantou a inesquecível Menina dos Três Olhos Azuis, que mira o amado "olho no olho, olho no olho e... olho".

Encontro com Chaplin

Georg Kreisler nasceu em 18 de julho de 1922, numa família judia de Viena. Desde pequeno, o filho de advogado aprendeu piano, violino e teoria musical. Porém sua formação foi interrompida aos 16 anos, quando a ingerência nazista e o crescente anti-semitismo forçaram os Kreisler a emigrar para os Estados Unidos.

Entre 1942 e 1945, o jovem integra as Forças Armadas norte-americanas, realizando shows para os GIs na Europa. Terminada a Segunda Guerra, cabe-lhe um soldo irrisório de 20 dólares semanais. Para complementá-lo, "George" busca trabalho – subordinado, como faz questão de enfatizar – na indústria cinematográfica de Hollywood.

Um de seus empregadores foi Charles Chaplin em pessoa, que preparava a película Monsieur Verdoux. Como se sabe, além de dirigir e atuar, o gênio inglês também se encarregava das trilhas sonoras, mesmo não sabendo escrever uma nota sequer. A tarefa de Kreisler era anotar as melodias que Chaplin assoviava, levando-as depois até a casa do alemão Hanns Eisler, em Malibu. O parceiro musical de Bertolt Brecht então realizava a composição propriamente dita.

Insucesso na Terra do Tio Sam

Como o salário de Hollywood não bastava, Kreisler também oferecia em night clubs suas artes de pianista e cantor de teatro satírico (o kabarett). Mas, ao que tudo indica, suas próprias canções eram macabras demais para o gosto norte-americano. Ou talvez o problema fosse a voz agridoce, a mímica facial exagerada?

Após haver atravessado meio país, com dinheiro emprestado, costumava ouvir, passados apenas dois dias de apresentações: "Olhe, você não é bem o que estávamos esperando. Nós o contratamos por duas semanas, você vai se apresentar três dias, pagamos por uma semana e pode ir embora, OK?"

"Não dei muito certo nos Estados Unidos", comenta o multitalento. Porém, após retornar à Viena natal, em 1955, a mordacidade de Kreisler continua não lhe angariando apenas simpatias e admiração. Ele é atacado pessoalmente e sua obra é censurada.

Na tradição de Heine

É, quem disse que não quero o bem de vocês / Se esbanjo dinheiro e tento lhes dar uma lição? / Quando tiverem acabado a escola, / Vão ver como o trabalho faz feliz. / Que nada, eu amo vocês e os faço ricos / Não em termos de caráter, e não tão ricos quanto eu / Mas ricos o bastante, não queiram ser espertos demais / E dêem-se por satisfeitos, pois ricos vocês são.

Está claro que versos como estes, da Canção do Capitalista, não são a melhor forma de fazer amigos. É a velha sina dos satíricos: serem punidos por aquilo que criticam, como se, por revelar o mal, pudessem ser identificados com ele. Basta pensar na recepção de um Voltaire, Gogol, Jonathan Swift, ou mesmo Brecht, por seus contemporâneos – e por boa parte da posteridade.

Assim, não é mero acaso um dos discos de Kreisler se intitular Die alten bösen Lieder (As velhas, maldosas canções). Trata-se de uma citação literal do alemão Heinrich Heine (1797-1856), também ele judeu e mal compreendido pelos que lhe atribuíam puro cinismo e destrutividade.

A arte como pátria

Mario Adorf singt Kreisler-Lieder
Kreisler (e) ao lado do ator Mario Adorf, que gravou suas cançõesFoto: picture-alliance/dpa

Contudo, Kreisler lembra que maligno não o satírico, mas sim a realidade que ele reflete. "Jamais fui maldoso, acho, tão pouco quanto o Iago no Otelo [de Shakespeare]. A gente diz coisas maldosas e negativas para alcançar efeitos bons e positivos." Ou, como disse numa entrevista à TV austríaca: "Para que as coisas mudem, para que fiquem melhores".

Até hoje, tendo alcançado sucesso inquestionável e mesmo prêmios e honrarias oficiais, permanece o mal-estar em relação à terra natal, que o obrigou a fugir e nunca o aceitou plenamente. "Não gosto de passar muito tempo na Áustria, me deixa nervoso."

Ele se considera melhor compreendido até na Alemanha, por exemplo. Porém, quando abre a boca, o sotaque é inegavelmente austríaco. E ele sempre será judeu. De exílio em exílio, no final das contas: "A arte é a minha pátria", resume o artista.

A dignidade do moleque incorrigível

Após centenas de canções, vários livros e duas óperas, Kreisler acredita que não precisa se esforçar tanto para alcançar seu público. "A idade exige uma certa... dignidade." Porém, em meio à sua nona década, ainda lhe cintila no olhar o eterno enfant terrible, um moleque que ignora tudo o que seja "politicamente correto".

É triste quando o amor esfria, / É tenebroso quando o amor se esvai. [...]
Só eu amo a todas para sempre, / Sem jamais a vida complicar, / E sou amado em troca, como é que consigo? [...]
Hoje encontrei uma mulher / Com certeza a mais linda deste mundo. / E agora, que eu não esqueça de mandar afiar a faca, / E de apanhar a pistola na limpeza, / De uma foice eu também vou precisar, um cinzano envenenado, / E um pequeno machado, talvez necessite um saco, / Uma vassoura, quem sabe, para os ossos varrer, / O querosene, este eu já encomendei.
Mulher bonita custa um monte de dinheiro!