"Fui enterrado nos escombros e renasci"
12 de janeiro de 2015Com apenas sete anos, o haitiano Lula Montinard já ajuda o pai no português. Sempre que tem uma dúvida, Bob (39) recorre ao filho para ajudá-lo com o novo idioma: "O menino é totalmente carioca", afirma o pai, satisfeito.
Há quatro anos no Rio de Janeiro, Lula e sua família vieram ao Brasil para tentar uma vida nova, após terem sobrevivido ao terremoto no Haiti, que completa cinco anos nesta segunda-feira (12/01).
A tragédia, que deixou cerca de 220 mil mortos e 1,5 milhão de desabrigados, desencadeou uma crise humanitária sem precedentes no país.
Com isso, muitos haitianos passaram a buscar refúgio em países como o Brasil, que chefia militarmente a missão de paz da ONU no Haiti (Minustah). Entre 2010 e 2013, mais de 21 mil haitianos chegaram ao país, segundo o governo brasileiro. Entre eles, a família Montinard.
Presos sob os escombros
"A nossa casa, que tinha três andares, caiu como um baralho de cartas", conta a mãe, Mélanie, de 33 anos. Ela foi a única a conseguir sair do local antes do desmoronamento. Bob e os dois filhos pequenos ficaram presos sob os escombros.
"Eu estava com o pé quebrado e não conseguia me mexer. Bimba, que tinha apenas um ano, estava embaixo de mim", explica Bob, que gritou por socorro e foi resgatado com o filho no mesmo dia.
Já Lula, com apenas dois anos na época, ficou três dias sob os escombros até ser encontrado. "Passou esse tempo todo sem comida e sem bebida", lembra Bob.
Com a fratura no pé, Bob ficou dois dias imobilizado, sem atendimento médico. "Tudo no Haiti estava bloqueado. Não tinha socorro, circulação, comunicação, nada. E meu pé começou a piorar muito", conta.
Para que Bob pudesse receber tratamento, a família teve que viajar para Guadalupe – território ultramarino francês no caribe – e depois para a França.
Mesmo com as cirurgias, Bob ficou com sequelas. "Sou um deficiente físico, não posso mais caminhar por muito tempo, levar meus filhos na escola", diz. Quando a família voltou ao Haiti, o país ainda vivia uma situação de calamidade pública, agravada pelo surto de cólera, em outubro de 2010.
"As ruas tinham cheiro de pessoas mortas e havia protestos toda semana. A miséria e a violência aumentaram muito. As crianças não conseguiam frequentar a escola e reclamavam sempre", conta Bob.
Além disso, a tragédia havia alterado a sua vida. Antes do terremoto, o casal, de classe media alta, tinha uma vida confortável. Bob trabalhava para uma ONG brasileira, como mediador em projetos sociais. Mélanie, de origem francesa, também atuava com assistência humanitária.
"Depois do terremoto, eu passei a precisar de ajuda econômica e até física. Antes era o contrário: eu é que ajudava as pessoas", explica Bob, que nunca conseguiu voltar ao local de sua casa. Só Mélanie retornou e recuperou alguns documentos da família – todo o resto estava perdido.
Reconstruir a vida
Para Bob, foi impossível reconstruir a vida no Haiti. Ele pensava constantemente na posição geográfica do seu país, localizado sobre uma falha geológica, e se conseguiria sobreviver ao próximo tremor.
"Psicologicamente, ficou difícil. Eu não era mais a mesma pessoa. Fui enterrado nos escombros e renasci. Em apenas dez segundos a minha casa caiu. É um pesadelo até hoje."
A família então decidiu sair do Haiti. Apesar de terem parentes na França e no Canadá, os Montinard não queriam morar em nenhum dos dois países. Como tinham amigos brasileiros, decidiram passar o Natal de 2010 no Rio de Janeiro e acabaram ficando. "Queríamos um lugar que se parecesse um pouco com o Haiti, mas que não tivesse terremoto", justifica Bob.
Mas a mudança não foi fácil. A burocracia e as leis de imigração assustaram a família. "Até hoje não conseguimos tirar a residência", reclama Bob. Por isso, afirma, o casal ainda não conseguiu restabelecer sua situação financeira anterior. Para sustentar a família, Bob que teve que retornar ao Haiti em duas ocasiões para poder trabalhar.
Apesar das dificuldades, ele diz estar contente no Brasil. Atualmente, Mélanie cursa um doutorado em antropologia e os dois fazem trabalhos esporádicos de tradução e em ONGs. Os filhos estudam, fazem capoeira, natação e futsal.
"No início foi bem duro. A gente ia no restaurante todo dia no Haiti, mas aqui não tínhamos nada. Hoje temos amigos e conseguimos ter uma vida melhor”, conta. “É uma luta, mas estamos felizes."