França lança "Brigadas Covid" para combater a pandemia
3 de junho de 2020Ali Miladi não gosta de hospitais. Ele não vai a um consultório médico desde os 15 anos. Mas na tarde de uma terça-feira recente, o homem de 31 anos estava sentado em uma sala no chamado centro Covisan, em Aubervilliers, um subúrbio de Paris localizado no departamento francês mais pobre, Seine-Saint-Denis. Miladi, dono de uma kebaberia, sofria há vários dias de dores musculares, fortes dores de cabeça, vertigem, náusea e diarreia.
"Quando me disseram no serviço telefônico médico que eu provavelmente tinha covid-19, imediatamente entendi a urgência de vir aqui – esta doença é extremamente perigosa", diz. "O fato de eu poder vir a este prédio municipal e não precisar ir a um hospital anônimo me ajudou a tomar essa decisão."
Miladi é um dos cerca de 400 pacientes que o Covisan de Aubervilliers já testou. O centro faz parte do plano da França de combater a pandemia – e impedir um novo lockdown. Mas os críticos dizem que o fim não justifica todos os meios planejados.
"Soluções individuais"
"Queremos encontrar soluções individuais para todos os lares contaminados, para impedir a propagação do vírus", diz a coordenadora do projeto de Aubervilliers, Anais Anthonioz. Pessoas infectadas também estão sendo redirecionadas para o centro por médicos e farmacêuticos. Se for considerado necessário, e se as pessoas envolvidas concordarem, as equipes do Covisan visitam a casa da pessoa doente.
"Queremos ver se as pessoas podem se autoisolar em salas separadas e saber quem está no comando da casa. Não faria sentido, por exemplo, enviar o chefe da família para isolamento em um hotel", afirma Anthonioz, acrescentando que suas equipes também tentam identificar pessoas de contato para recomendar que sejam testadas.
A equipe de Aubervilliers faz parte de um projeto piloto lançado em 23 de abril pelo grupo hospitalar AP-HP, que inclui mais sete centros. Cerca de 4 mil pessoas já foram aconselhadas e aproximadamente metade delas foi testada. As equipes móveis visitaram mais de 860 domicílios.
Eficácia comprovada no Haiti
"O projeto é baseado em um sistema usado no Haiti para erradicar a cólera", afirma Jean-Sébastien Molitor. Ele é o diretor no Haiti na organização não governamental Solidarités Internationales e ajudou a criar o Covisan. "Costumávamos enviar equipes móveis para isolar blocos inteiros de casas no Haiti – o que era necessário para impedir que famílias individuais fossem estigmatizadas", explica, acrescentando que o método possibilitou isolar mais de 80% de todas as pessoas infectadas e derrotar a doença.
O governo francês gostaria de replicar esse sucesso e vem criando as chamadas “Brigadas Covid” em todo o país. Isso inclui equipes móveis, como a de Aubervilliers, mas também as centrais de atendimento telefônico operadas pela Caixa Nacional do Seguro de Doença, ou CNAM. As brigadas móveis lidarão com casos e grupos específicos e ainda estão sendo configuradas. As centrais telefônicas estão em operação desde 13 de maio, dois dias após o primeiro levantamento das restrições. Cerca de 6.500 pessoas, um décimo da força de trabalho da CNAM, alcançaram 9 mil pessoas infectadas e 25 mil pessoas de contato nos primeiros 10 dias.
Naquela mesma terça-feira, no subúrbio de Evry, a cerca de 40 quilômetros ao sul de Aubervilliers, Sophie Merk falava ao telefone em uma das centrais de atendimento da CNAM. Ela estava ligando para um homem de 59 anos que havia recentemente testado positivo. Apenas quatro, em vez dos 12 funcionários habituais, estavam trabalhando na sala. As mesas são separadas por acrílico. Uma tela na parede diz "Bom dia, brigada!"
"Olá, estou ligando da CNAM para falar sobre como você pode se isolar em casa", disse Merk ao telefone. O motorista do outro lado da linha disse a ela que estava se isolando com a esposa e dois filhos em casa desde meados de março. Merk respondeu que receberia máscaras faciais gratuitas. Então, ela conversou com a esposa e um dos filhos para tentar convencê-los a fazer o teste. Mas eles recusaram. "Eles temem que o teste possa ser realmente desagradável. Mas isso não é dramático – a família mal sai de casa, e as chances de contaminar outras pessoas são muito baixas", diz ela.
"Nosso objetivo é interromper a cadeia de infecção, e queremos convencer as pessoas a fazer o teste assim que houver a menor suspeita de covid-19", acrescenta. Merk diz que se ofereceu imediatamente quando seu chefe falou sobre as brigadas. "Sinto-me útil aqui – estou ajudando a derrotar a epidemia."
O diretor geral da CNAM, Nicolas Revel, diz que as brigadas são necessárias para impedir um novo lockdown. "A ordem para que as pessoas fiquem em casa nos ajudou a reduzir a taxa de infecção, de forma que agora seja possível um isolamento direcionado", diz, acrescentando que a estratégia da França parece estar funcionando, com o número de novas infecções continuando a diminuir. "Apesar de que o país não deve baixar a guarda por pelo menos mais algumas semanas", frisa o especialista.
Componentes digitais preocupam
Mas o novo sistema da França também está enfrentando resistência, devido ao tipo de dados que coleta. Os agentes da central de atendimento recuperam os detalhes de contato das pessoas infectadas de dois novos bancos de dados. Existe agora a obrigação de relatar resultados positivos dos testes covid-19, e os médicos inserem esses dados no chamado banco de dados Contact Covid, com laboratórios de teste registrando-os no chamado Sidep.
Além disso, a França é um dos primeiros países da Europa a adotar um novo aplicativo de rastreamento de smartphones, chamado StopCovid. De forma voluntária, as pessoas podem baixar o aplicativo e inserir resultados positivos com um código de barras ou um número que recebem após o teste. O aplicativo alerta as pessoas com quem a pessoa infectada entrou em contato e recomenda que elas sejam testadas também.
A StopCovid é criticado por associações de médicos, ONGs e até parlamentares do partido governista da França. Eles temem, entre outras coisas, que o aplicativo possa ser hackeado. Grupos de defesa da privacidade também não confiam que o governo apague os dados recolhidos pelo aplicativo após a crise de covid-19.
"Após os ataques terroristas de 2015, o governo estendeu o estado de emergência seis vezes e, finalmente, o consagrou na lei comum. Como podemos acreditar seriamente que esse aplicativo não será usado para outros meios após a crise?", questiona Neha Oudin, do grupo de privacidade Quadrature du Net. Ele duvida que o aplicativo seja de muita utilidade. "As pessoas mais vulneráveis são os idosos, e muitos deles não possuem um smartphone", argumenta.
Preocupação com privacidade
Oudin também está preocupado com os novos bancos de dados. Os dados coletados devem ser apagados após três meses, mas os resultados positivos dos testes serão salvos anonimamente no chamado Centro de Dados de Saúde do governo para fins estatísticos.
"Este servidor relativamente novo está sendo operado pela Microsoft, o que significa que a empresa americana possui os códigos de descriptografia do sistema", afirma. "Será fácil para o governo dos EUA forçar a Microsoft a entregar os dados e depois repassá-los à CIA ou a outras organizações – isso é uma ameaça real aos nossos direitos pessoais", acrescenta.
Além disso, Oudin não acredita que esse tipo de dados possa se tornar anônimo. "Cada entrada inclui o histórico médico do paciente e facilita a identificação dele", ressalta.
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