"Enfrentamento às milícias é discurso midiático"
26 de outubro de 2023A ação promovida pela milícia na Zona Oeste do Rio de Janeiro, que deixou 35 ônibus queimados, foi o maior ataque ao transporte público já registrado na cidade. Ao revelar o poder de ação dos milicianos, o episódio coloca em xeque a capacidade de resposta do governo a um problema crescente – com raízes dentro do próprio Estado.
Quando as primeiras imagens do ataque chocavam o país, o governador Cláudio Castro (PL) falou com a imprensa e prometeu uma resposta dura contra os responsáveis. Ele lembrou que a ação era uma resposta à morte do miliciano conhecido como "Faustão". O criminoso era o número 2 e sobrinho de Zinho, chefe da milícia que atua na região.
"Enquanto estivermos aqui, o combate será duro, 24 horas, sete dias por semana. O mal não vencerá o bem", afirmou Castro. Pelo X (ex-Twitter), o governador buscou desencorajar os criminosos durante o ataque em curso. "O crime organizado que não ouse desafiar o poder do Estado." Após ser criticado pela declaração, o governador apagou o post.
A insegurança de Castro reflete a fragilidade no comando das polícias. Ainda no mandato anterior, o governador optou pela extinção da antiga Secretaria de Segurança Pública. As polícias passaram a ter comandos independentes desde então. O novo secretário da Polícia Civil, Marcos Amim, é o quarto ocupante do cargo em três anos.
Atualmente, cerca de 20% da área da região metropolitana do Rio é controlada por algum grupo armado, e as milícias detêm metade dessas áreas. Em 16 anos, o domínio das milícias sobre territórios cresceu 387%. Os dados estão no Mapa dos Grupos Armados, elaborado pelo Instituto Fogo Cruzado e o Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos, da Universidade Federal Fluminense (Geni-UFF).
"A estrutura de poder obtém vantagens e ganhos a partir da estrutura miliciana. Só que ninguém vai assumir publicamente. Pelo contrário, o discurso midiático, para ganhar voto, é o discurso do enfrentamento, da guerra, da morte do bandido", afirma o sociólogo José Cláudio Alves, em entrevista à DW Brasil.
"Só que o bandido é aquele que garante a perpetuação dessa estrutura de poder, de vitória dos interesses desses grupos dominantes naquele local. Nós convivemos com esta grande contradição", complementa.
Alves estuda a atuação das milícias desde a sua formação, a partir dos grupos de extermínio na ditadura militar. O pesquisador ressalta que o vínculo dessas organizações com o Estado é justamente a garantia de sua sobrevivência e expansão. E também o que as diferenciam de facções do narcotráfico.
"A criação do termo 'narcomilícia' é uma grande jogada, pois joga nas costas da estrutura do tráfico de drogas o funcionamento e a continuidade das milícias. Isso é falso. As milícias emergem dentro da estrutura policial do Estado, continuam nessa estrutura e vão continuar sendo protegidas", assinala o pesquisador.
Alves demonstra ceticismo quanto a uma possibilidade de enfrentamento real das milícias, sem que haja mudanças profundas na estrutura política. Ele projeta uma expansão progressiva dos grupos milicianos, com impactos cada vez maiores para as populações pobres.
"A formação de uma grande massa precária joga toda essa população numa vala e a obriga, muitas vezes, a abraçar o mundo do crime como uma alternativa. Tudo indica que se espera um futuro de mais confrontos, mortes, sofrimento e desigualdade. E mais projetos de grupos armados que vêm emergindo e vão se projetar como alternativa real para essa sociedade", analisa.
DW Brasil: Qual é sua interpretação sobre o recado que as milícias passaram ao realizar um ataque de proporções inéditas ao transporte público no Rio de Janeiro?
José Cláudio Alves: As milícias viraram uma espécie de mediadores universais das relações nos territórios onde estão. A presença de um grupo armado como este, ao longo do tempo, vai produzir esse fenômeno de normatização das relações, além do controle econômico e político desse local. A estrutura de poder obtém vantagens e ganhos a partir da estrutura miliciana. Só que ninguém vai assumir publicamente. Pelo contrário, o discurso midiático, para ganhar voto, é o discurso do enfrentamento, da guerra, da morte do bandido. Só que o bandido é aquele que garante a perpetuação dessa estrutura de poder, de vitória dos interesses desses grupos dominantes naquele local. Nós convivemos com esta grande contradição.
O recado do miliciano é que ele não quer pagar esse pato. Ele não quer ser a bucha de canhão para ser morto lá na ponta, como bandeira política eleitoral de governadores ou deputados. E não quer ser "bucha" para o sistema judiciário que vai julgá-lo e condená-lo. Ele quer outra base de negociação. A morte de uma liderança estabelece essa nova base para os acordos que continuam funcionando. O ano que vem vai ser decisivo, porque as eleições municipais movimentam o cenário político como um todo, com impacto nas eleições de 2026. O miliciano está dizendo que não se sujeita a ser o elo fraco desse pacto, desse acordo todo. Ele não está disposto a ter sua vida estraçalhada pelo sistema que ele ajuda a funcionar, em que ele media as relações.
O governador Cláudio Castro (PL) trocou o secretário de Polícia Civil pela segunda vez em menos de um mês. Como chefe das forças de segurança, ele tem condições de liderar o enfrentamento às milícias?
O governador Cláudio Castro tem um conjunto de comprometimentos. Desde o início, como vice de [Wilson] Witzel, que foi cassado, mas tinha uma plataforma brutal de "bandido bom é bandido morto". Cláudio Castro continua isso. Ele só não tem essa figura histriônica que era Witzel. Ele é dos bastidores, mas mantém essa estrutura. As composições que fez ao longo do tempo mostram isso. Um exemplo é Allan Turnowski, que foi secretário de Polícia Civil no começo do seu governo. Ele tinha envolvimentos com milícia, jogo do bicho e foi cassado como candidato. O ex-secretário de sistema penitenciário dele foi exonerado e processado em função de acordos com o Comando Vermelho.
O atual secretário de Polícia Civil, Marcos Amim, vem numa esteira de acordos com vários membros da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro da extrema direita. Eles defendem a lógica do "bandido bom é bandido morto" e colocam na chefia da Polícia Civil alguém comprometido com essa prática. Ele estava no comando da chacina do Jacarezinho. É um youtuber que dissemina essa ideia do confronto, da letalidade policial, do bem contra o mal. Não tem coisa mais útil para a estrutura miliciana do que um cara como ele. Nem com esse discurso, nem com esse maniqueísmo, porque isso esconde toda a realidade que de fato subjaz a esse universo.
Cláudio Castro é comprometido com estruturas milicianas na Baixada. Seu secretário de Transporte é o ex-prefeito de Duque de Caxias, Washington Reis, que tem uma das mais consolidadas estruturas milicianas da região. Ele sempre teve relação com elas e se projetou a partir dessas relações. Castro também tem relações com o prefeito de Belford Roxo, Wagner Carneiro [Waguinho], que estabeleceu um destacamento do 39º Batalhão da Polícia Militar naquele município. Basicamente, foi de onde saiu toda a campanha do próprio Waguinho, inicialmente, e do deputado estadual Márcio Canella (PL), que indicou Marcos Amim para secretário de Polícia Civil. Então, o ciclo se fecha. É um conjunto de interesses que se protegem, e um promove o outro. Castro faz o discurso "fanfarrão" que vai matar, que ninguém vai se contrapor à estrutura do Estado, como um herói. Mas a coisa é muito mais complexa do que esse jogo discursivo.
Um dos pontos de maior preocupação no avanço recente das milícias é a associação desses grupos com o tráfico. Como se dá o envolvimento entre essas organizações?
Cláudio Castro e Allan Turnowski, ex-secretário de Polícia Civil, criaram o termo "narcomilícia". É uma grande jogada, pois joga nas costas da estrutura do tráfico de drogas o funcionamento e a continuidade das milícias. Isso é falso. As milícias emergem dentro da estrutura policial do Estado, continuam nessa estrutura e vão continuar sendo protegidas. Eles podem não estar no chão da rua, operando a estrutura miliciana. Isso eles deixam para os civis, muitos deles cuja origem é o tráfico de drogas, porque é o lugar que reservaram para esse tipo de grupo, justamente os que vão ser tratados como bandidos a serem liquidados e mortos. Ou seja, a construção da ideia de uma narcomilícia favorece absolutamente a perpetuação desses grupos políticos, blindados dentro da estrutura do Estado e matando aqueles que seriam os traficantes responsáveis pela milícia.
Isso começou em outubro de 2020, quando fizeram uma operação conjunta da Polícia Rodoviária Federal e Polícia Civil, na Baixada Fluminense. Mataram 17 pessoas e disseram ser narcomilicianos. Essa é uma grande jogada. É verdade que a estrutura do tráfico tem aprendido com a estrutura miliciana, além de estabelecer relações e acordos. A milícia sempre lidou com a estrutura do tráfico de drogas, ou alugou áreas, ou operou com acordos, nunca foi diferente. É claro que ela faz um cartão de visita dizendo que veio combater o tráfico, o bandido – outra dessas grandes falácias que o tempo todo são jogadas. O tráfico tem aprendido, vendo esse poderio todo, os mercados que se abriram com as milícias. Então, começa a reproduzir práticas de negócios e controles territoriais muito similares ao que a milícia faz. Este é um cenário.
Essa aproximação representa acordos que vão se estabelecer. Por exemplo, uma aproximação entre milícia e Comando Vermelho, inimaginável há algum tempo, hoje é real. O Comando Vermelho faz parte do leque de acordos, a partir do próprio Zinho. Ele buscou essa parceria porque vê no Comando Vermelho um grupo com poder de fogo, de controle territorial e estratégia muito bom, o suficiente para protegê-lo contra os grupos milicianos que emergiram dentro da milícia para disputar com ele. Ele vê uma capacidade de negociação com outros grupos armados para poder obter benefícios. O Comando Vermelho, por sua vez, ganha áreas e projeção. Ambos se beneficiam do acordo.
Qual é o nível de ameaça que as milícias representam para o Rio de Janeiro hoje?
O risco para o Rio de Janeiro é o que sempre viveu. Essa estrutura se montou há mais de cinco décadas, durante a ditadura militar, com a formação dos grupos de extermínio. Uma estrutura que fica intocável, enquanto se amplia e conquista cada vez mais espaços, pessoas, grana e poder político, vai se aprofundar cada vez mais. Quem está fora dessa estrutura é quem vai pagar a conta. E também aqueles que fazem parte, mas em posições inferiores, os "pés de chumbo", civis, traficantes e milicianos pobres na ponta. Esses vão pagar um preço. No topo e em níveis intermediários da estrutura, todos vão ganhar a sua parte no butim. Quem mais sofrerá com tudo isso são os mais pobres, as populações que vivem sob esse inferno de controle de poder e dinheiro, de disputas intensas entre esses grupos.
Como o fosso social só tem aumentado no Brasil, o mundo do crime é cada vez mais valorizado como alternativa de sobrevivência, de projeção social no meio do caos que nós vivemos neste país. E pela própria imposição de uma lógica neoliberal, de ganhos altíssimos para determinados grupos, desregulamentação da economia e das relações de trabalho pela "uberização". A formação de uma grande massa precária joga toda essa população numa vala e a obriga, muitas vezes, a abraçar o mundo do crime como uma alternativa. Tudo indica que se espera um futuro de mais confrontos, mortes, sofrimento e desigualdade. E mais projetos de grupos armados que vêm emergindo e vão se projetar como alternativa real para essa sociedade. É disso que estamos falando.
Qual deveria ser o papel do governo federal em meio à crise vivida no Rio?
O governo federal vive uma imensa contradição, que resulta de suas próprias escolhas. Ele quer abraçar a estrutura da direita e da extrema direita como alternativa para ter base parlamentar no Congresso e aprovar os seus projetos. Por outro lado, diz que quer combater a violência e o crime organizado. O governo do estado de São Paulo matou 29 pessoas em uma operação policial de 40 dias no Guarujá. O que foi feito? Nada, nem sequer o envio de uma comissão de peritos especiais para avaliar essas mortes. Isso ocorreu no primeiro governo Lula, após a chacina do Pan-Americano, no Complexo do Alemão, em 2007, quando 1.500 homens da estrutura policial mataram 19 pessoas. Uma comissão da Secretaria de Direitos Humanos veio, fez o laudo cadavérico e identificou que 73% das perfurações daqueles corpos estavam localizadas nas costas e na cabeça, o que dava um grande indício de que foram executados sumariamente.
Ou seja, esse governo não quer confronto com a estrutura de poder dos grupos de direita e de extrema direita no Brasil, porque quer emplacar seus projetos dentro do Congresso. No Rio de Janeiro, o governo federal colocou Força Nacional, Polícia Rodoviária Federal e Polícia Federal em portos, aeroportos e rodovias. Assim, manteve-se em uma distância confortável da política de extermínio do Estado, para não sujar suas mãos de sangue e se comprometer junto à base que o elegeu. Por outro lado, não vai fazer ações mais eficazes para mudar esse cenário. As eleições do ano que vem estão sendo disputadas agora. Cláudio Castro propôs que os deputados distribuam R$ 4,5 bilhões de fundos especiais do governo, obtidos graças à não aplicação de recursos em diversos setores, como habitação, saneamento, um conjunto de secretarias que não aplicaram os recursos a elas destinados. Não por incompetência, mas por puro interesse de gerar esse fundo monstruoso, a ser utilizado nas eleições.
É disso que se trata, um imenso acordo de "toma lá, dá cá". E esse cenário vai atingir a estrutura federal em 2026, nas eleições. Só que o governo Lula não quer se imiscuir nesses acordos, quer se manter nessa numa posição confortável, distante. Não vai interferir. Então, qual é a capacidade de modificar esse cenário, alterá-lo em função de uma proposta de reconfiguração da estrutura política que finalmente vá resultar na modificação do cenário da segurança pública. Até agora, não vejo nenhum sinal de que este seja de fato o objetivo do governo federal. Pelo contrário, quer manter as coisas como estão: agrada a todos os grupos, em cima do muro, negociando para ver quem dá mais e ver como obter vantagem nessa estrutura.